Paz - O sonho adiado da humanidade.
e o sossego que desejo
para o velho que serei,
juro nunca me render. (…)
Um solavanco na estrada retira-me do cantinho para onde me isolei em pensamentos, apesar de atento e com a arma pronta e em posição. Aprendemos a estar alerta e ausentes ao mesmo tempo, acreditem que o ser humano é capaz de muita coisa quando o alarme da sobrevivência está ligado.
Regressava de mais uma daquelas patrulhas de rotina pela cidade. Esta última semana impunha uma atenção redobrada pois é sempre quando se facilita que os azares acontecem. “Apertava” pois com os novatos que levaria para Mostar. Estes rapagões nórdicos ainda não aceitavam bem as ordens vindas de alguém com pele e cabelo escuro. Não havia a própria igreja católica retratado Jesus com cabelos loiros e olhos azuis? Como se este estereotipo fosse comum na Alta Galileia há 2038 anos. Enfim, assuntos que o tempo resolveria.
Levava diariamente os “tenrinhos” em patrulha ensinando-lhes tudo o que havia aprendido e ao fim de uns dias já me olhavam como um irmão mais velho e não havia gesto ou cautela minha que não imitassem. Estavam a aprender depressa e aquele olhar altivo foi dando lugar a um outro mais próximo da humildade e do reconhecimento. É normal, afinal com o capacete e os óculos tácticos postos os snipers não distinguem a cor dos cabelos ou dos olhos.

(…) Pela verdade que afirmo,
dos que a verdade demandam
até à contradição,
juro nunca me render. (…)
Chegou o dia da partida e fui despedir-me dos “velhos”. Ofereci-me para comandar a escolta da coluna até ao aeroporto. Do grupo inicial só ficavam eu, “Godzilla”, Evans e “Razor”. Quando parámos na placa de estacionamento de aeronaves, apeei, empunhei a arma e acompanhei-os até ao avião. Queria garantir que nada lhes aconteceria a três horas de casa. Não se explica, sente-se.
- Ramon, protect Leijla. Be sure that she will be in the plane next week, ok? 1 - Disse Rob aflito, uma vez que embarcava dez dias antes da sua namorada. Havia conseguido a suspensão da sua missão para casar. Ergui o polegar em assentimento e disse-lhe um palavrão que me havia ensinado na sua língua materna.
- You mad Portuguese, you’re…! 2 – Disse Rob com aquele sorriso de miúdo na cara sardenta.
Abraçámo-nos, não havia tempo para mais. Dirigiu-se para o avião militar que o levaria de volta a casa, a meio do caminho virou-se, cerrou o punho direito, elevou-o no ar e bateu com ele no peito, junto ao coração. Era o sinal da irmandade forjada em pouco tempo mas temperada como o aço, em fogo quente.
Pensei como seria fácil dar a vida por Rob, “Godzilla”, “Gaza”, Evans, Carlo e todos os outros, sem olhar para trás, mas não o faria por gente que conhecera a vida inteira. “Gaza” havia dito uma vez, nas raras vezes que falava, que aqui aprenderíamos a imensa lição da camaradagem e da solidariedade. Como tinha razão. Ia despedir-me dele com a continência e segurou-me a mão puxando-me para ele. Abraçou-me e disse, disfarçando a emoção:
- Ramon, how proud I am…! 3 - Perfilou-se perante mim, ele, um major, fez a continência ali, em frente de todos, até dos novatos, abraçou-me de novo e entrou na fila para o avião militar. Voltei a vê-lo dois anos mais tarde e passámos férias em família, no Algarve, nuns apartamentos nos Olhos de água. Morreu em Agosto de 2001, aos 48 anos, de doença misteriosa, numa quinta perto da sua Luton natal. Jeannie, a sua viúva, é hoje uma das activistas na luta pelo esclarecimento das doenças adquiridas por militares britânicos na Guerra do Golfo e nas que se lhe seguiram.
(…) Pelos amigos queridos
e os companheiros de ideias,
que são amigos também,
juro nunca me render. (…)

Fiquei com a responsabilidade de olhar pelas duas irmãs órfãs de mãe desde a adolescência e agora também sem pai. Dijana ficava sozinha em Sarajevo, feliz mas amargurada pela partida da irmã. Uma médica de uma ONG, que obviamente protejo a identidade, havia sido decisiva no processo de “recrutamento” para aquela organização da enfermeira diplomada Leijla Cican, mexendo uns cordelinhos e retirando-a de Sarajevo com destino à Holanda.
Dijana sentia-se feliz pela irmã e apreensiva pelo seu destino. Algum dinheiro, dez volumes de tabaco e seis caixas de rações enlatadas, tudo contribuição do pessoal, conseguiram o visto para Dijana. Foi connosco em coluna militar até Mostar, onde a protegemos até à data da sua partida no final de Maio de 1994, altura em que embarcou num avião da ONU com destino a Frankfurt e com o carimbo de “Medical Personnel” de uma ONG no passaporte.
Os anos passaram sem nunca os procurar, parecia que tudo tinha acontecido noutro planeta, noutra vida, de tão irreal que é. Face à imensa tragédia da guerra, de que vale a saudade e para quê reavivar memórias?
(...) E até pelos inimigos,
que odeiam a iberdade
e por isso não são livres,
juro nunca me render.
Em Outubro de 2003, nove anos volvidos, juntei-me a uma equipa multinacional de liderança holandesa para ir à Federação Russa, em missão de controlo de armamentos. Tinha a morada de solteiro de Rob e através dela, o meu amigo holandês, Paul Werstratten, com quem já havia servido antes, obteve o número de telefone.
Rob é hoje sargento no exército holandês, casou com Leijla dois meses após a chegada desta à Holanda. Têm duas filhas lindas, fruto da mistura nórdica e bósnia. Vivem nos subúrbios de Amesterdão numa daquelas casinhas típicas. Visitei-os e fizeram questão que ficasse para jantar, mas no tipo de missões em que andava inserido a equipa prevalece e o tempo é curto.
Na despedida Leijla disse-me que a irmã não vivia longe e que trabalhava ali bem perto, num lar para idosos. Fora casada com um amigo de Rob e tinha um filho. Disse-me que a irmã lhe havia dito que teria ido comigo para onde eu a levasse, que jamais se esquecera de mim e que frequentemente falava sobre mim. Ainda guardava uma fotografia que havíamos tirado juntos. Despedi-me de Rob à porta e então Leijla disse-me que a irmã estava ao telefone. Tremeram-me as pernas e a boca secou. Maquinalmente reentrei em casa e peguei no telefone, balbuciando qualquer coisa.
- Ramon...How are you, my angel of Sarajevo? 4 – Já falava inglês.
- I´m... Je souis bien, et toi? 5 – Respondi, relembrando que lhe ouvi as primeiras palavras em francês.
- I’m OK. I wish to see you again! I’ve a soft bed and clean sheets! 6 Disse rindo. Era a primeira vez que a ouvia rir assim, sem medo, feliz. Trocámos mais umas palavras e despedi-me sentindo um nó na garganta.
Entrei no carro. Um frio doloroso invadia-me o estômago. Cantarolei baixinho para disfarçar os soluços:
Há um lado carente dizendo que sim,
E esta vida da gente gritando que não.
Sempre gostara de Maria Betânia e das suas hipérboles sobre o amor, mas agora a letra afigurava-se trágica e tristemente real...tão real que doía…muito.
No local de pernoita fui encontrar a equipa no bar. Bebi umas cervejas, despedi-me e retirei-me, soltando um palavrão na minha língua natal, os outros olharam para mim, riram. É universal o sentimento com que se cospe a resignação.
Quis o destino que a voltasse a encontrar, mas nessa noite recordei a sua voz e o meu aniversário em Sarajevo. Então, sem poder reprimir mais o que me ia na alma, chorei por “esta vida da gente gritando que não!”
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1 – Ramon, protege a Leila, assegura-te que ela vai no avião na próxima semana, OK?
2 – Tu, Português louco, tu és…
3 – Ramon, como estou orgulhoso…!
4 – Ramon… Como estás, meu anjo de Sarajevo?
5 – Eu…Eu estou bem, e tu?
6 – Estou bem. Desejo ver-te de novo. Tenho uma cama macia e lençóis lavados!