quarta-feira, julho 26, 2006

Farrapos de vida...

Pam! – O som da pancada dada com a mão na mesinha de cabeceira anunciava mais um acordar vindo não sei de onde. Suava abundantemente e acordei sem força nos braços. Lancei num só movimento as pernas para fora da cama e o frio da tijoleira trouxe-me de volta ao presente. Tinha a boca seca e a respiração ofegante.
Sem querer lá voltam os “filmes” do passado. Recordei, agora acordado, os meus camaradas, alguns dos quais só conheci jovens e é assim que os recordo, nunca envelhecem. É assim que se lembram os mortos, como eram.
Como um autómato procuro “o álbum” de fotos fechado a sete chaves que mais ninguém viu. Lágrimas teimosas inundam-me os olhos, embora as tente conter num esforço vão de orgulho másculo. Pego no “portátil” e descarrego o que me pesa há doze anos.
As lágrimas de impotência que verto são o desespero e a raiva calada e surda, desejando que o caos nunca regresse. Não é pieguice, é meramente humano, é de quem já esteve na toca do lobo mau e saiu de lá, como? Eu sei lá!
Molhei o teclado! Merda….Desculpem a grosseria…saiu!


Espreito o sono dos meus filhos na madrugada. A memória leva-me de novo e recordo as crianças que brincavam em Sarajevo…às guerras durante a guerra. Não sorriem, desenham esgares de ressentimento recalcado adquirido nas conversas ouvidas aos mais velhos da família. Apontam as armas de plástico a quem os fotografa e a nós também, soldados da ONU.
Recordo a conversa ouvida numa esplanada na tarde anterior, cuscamente, confesso. Alguém falava nos bombeiros chilenos e no português mortos num incêndio a semana passada e as velhas receitas para o fim da criminalidade incendiária surgem como se estivéssemos a falar do degolar do frango para a cabidela.
Nunca conheceram o caos nem nele sabem sobreviver e ainda assim desejam-no?
Matar um animal de sangue quente não é o mesmo que matar uma barata e matar uma galinha ou um porco não é o mesmo que derrubar um ser humano…não desejem nunca o que não conhecem!
Os pensamentos são como as cerejas, não só as conversas. São 05H14 da madrugada. Faço café e acendo a TV. A CNN passa imagens das ruas de Beirute. Destroços, só destroços…e o cheiro? Ah! A televisão não “dá” o cheiro.
Mais um camarada se junta na madrugada e recordei-lhe a morte na Alameda dos Atiradores. Era cabo da engenharia francesa ao serviço da ONU. Morreu enquanto operava um bulldozer, removendo destroços.
Tauuuuuuu! - Aquele estampido seco com eco era-me familiar, seguiu-o o barulho do vidro a partir-se e o som surdo do corpo a cair no solo. Até o ouvi afogar-se no próprio sangue, de tão perto que estava. Reagimos de imediato e localizámos o atirador e o marcador, iniciando a caçada. Ouvimos “Gaza” gritar no rádio; “Capture or eliminate”. Por mim estava decidido, escolhi a primeira opção.


Entre as ruínas duma fabriqueta de curtumes havia uma passagem para as montanhas a sul e foi para lá que corremos, eu, Evans, Voborny e Peter. Eles não sabiam que sabíamos. Nas traseiras havia um pequeno descampado, então cemitério de ocasião das vítimas dos snipers. Instalámo-nos e aguardámos. Do meu spot, nas ruínas de um prédio próximo e enquanto os outros batiam os prédios em redor, olhava para um insecto que nunca vira. Meio escaravelho, meio aranha, carregando “cagadelas” de morcego para o ninho…que raio de “aranhiço” era aquele?
Olhei para o relógio e já tinham passado 40 minutos. Doía-me agora o corpo da imobilidade forçada. Mexi os dedos dos pés e contraí todos os músculos para afastar a “dormência”.
Uma brisa matinal de norte trazia-nos os odores do rio Miljascka e duma cidade cercada e sem esgotos. Nem o Vicki Vaporub ou pomada de bálsamo metidas nas narinas evitavam a inalação do cheiro a caos. Que fedor!

Uma pedrinha atinge-me o capacete e olho na direcção de Evans. Apontou-me umas ruínas de um prédio de apartamentos a cerca de um campo de futebol de distância da minha posição, ponto provável de passagem do sniper e da parelha. Fiz-lhe sinal de OK, virei para lá o “ferrolho” e preparei-me.
Suava agora e sentia frio na testa e na curva das costas acima do dito. As mãos suadas dentro das luvas tácticas indicavam-me o quão perto estava da morte. Num instante era caçador, noutro caça. O “aranhiço” continuava a sua vida indiferente àquela merda toda… só lhe interessava a recolha de caganitas de morcego.
Nas ruínas indicadas, uma porta de um guarda-fato abriu-se lentamente e saiu de lá um “deles”. Fez um sinal para dentro do móvel e saiu o outro. Estavam relativamente relaxados, convencidos de ter iludido a perseguição. De repente um deles avista ou suspeita da presença de Peter e começam os dois a correr para a encosta, procurando o apoio dos seus, ao mesmo tempo que abriam fogo.
Tiros, gritos, mais tiros e palavrões, eis o inferno em acção. As orelhas das mães de ambos os lados ardiam com o que os seus filhos gritavam em várias línguas. Já não suo, só sinto o coração latejar na cabeça e um zumbido nos ouvidos. A boca secou e tenho os sentidos em alerta. Aí estão eles!
Aponto de olhos abertos para uma aberta nas ruínas e na vegetação…Fecho um…!
Reparei então, só então, que o impacto de um tiro num corpo não causa o efeito igual ao dos filmes. Primeiro é o pó acumulado na roupa que deixa uma nuvem no ar e só depois o sangue aparece. Por um óculo têm-se uma visão privilegiada e uma melhor percepção da tragédia.
Tombaram os dois. Não é pessoal nem fruto de ódio, é assim mesmo, ou eles ou nós…antes eles! Evans ergue-me o polegar e tira umas fotos oficiais para o relatório.


Durante a guerra, o engenho humano, de sérvios, croatas e bósnios, abriu passagens entre paredes de apartamentos, de um prédio para outro, por quarteirões inteiros, colocando mobília a ocultar o buraco. Daí aqueles “mecos” me terem aparecido a menos de 100 metros de dentro de um guarda-fato.
Amanhece agora e os fantasmas vão-se…mas voltam um dia destes…sempre. Há doze anos e ainda está aqui tudo bem vivo…que puta de recordação!

quinta-feira, julho 13, 2006

Anjos sem asas...

Hamilton Naki, um sul-africano de 78 anos, faleceu no fim de Maio deste ano. A notícia não se propagou nas parangonas jornalísticas, mas a sua história é uma das mais extraordinárias do século 20. O consagrado órgão de comunicação social, "The Economist", contou-a no seu obituário numa das primeiras semanas de Junho passado, sob o título, “ O cirurgião clandestino”.
A vida deste homem e o que a sociedade sul-africana lhe fez, mesmo após o Apartheid, levam-me a crer que para além da alucinação paranóica do racismo, a perplexidade da segregação tribal ainda enoja mais.
Contarei a história à minha maneira, dando a minha interpretação dos factos, pois a alguns deles acedi por testemunho directo e também porque quis a vida que conhecesse alguns Hamiltons noutras paragens.

Hamilton Naki foi um grande cirurgião. Foi ele quem extraiu do corpo da dadora o coração transplantado para o peito de Louis Washkanky em Dezembro de 1967, na cidade do Cabo, na África do Sul, na primeira operação de transplante cardíaco humano bem sucedida.
Ainda hoje esse trabalho se reveste de especiais cuidados médicos para quem tem formação e não é qualquer um que o faz. O coração doado tem de ser retirado e preservado com o máximo cuidado. Naki era, talvez, o segundo homem mais importante na equipa que fez o primeiro transplante cardíaco da história, mas não podia aparecer porque era negro no país do apartheid. Ao contrário, o Chefe da Equipa de Cirurgia, o branco Christiaan Barnard, tornou-se uma celebridade internacional de um momento para o outro.
Mas Hamilton Naki não podia sequer aparecer nas fotografias oficiais da equipa e quando por lapso apareceu numa, o hospital fez circular uma nota de imprensa dizendo que se tratava de um auxiliar de limpeza.
Hamilton Naki vestia na altura uma bata e máscara cirúrgicas, estranha indumentária para um auxiliar de limpeza.

Hamilton, abandonou a escola aos 14 anos e foi trabalhar como jardineiro na Escola Médica de Cape Town (Cidade do Cabo), onde, face à sua habilidade manual e excepcional capacidade de aprendizagem, se tornou no faz-tudo da clínica cirúrgica da escola, lugar onde os médicos brancos treinavam as técnicas de transplante em cães e porcos.
Começou por limpar os chiqueiros e os canis e foi aprendendo cirurgia por observação, enquanto assistia às experiências com animais. Nas horas vagas lia alguns manuais médicos e tornou-se um cirurgião excepcional, ao ponto de Barnard o ter requisitado para sua equipa, exigiu-o até.
Tal imposição constituía uma violação clara das “leis” racistas e incompreensíveis da África do Sul, uma vez que o Kaffir Naki, não podia operar pacientes nem tocar no sangue de brancos, apesar da exigência de C. Barnard ter sido satisfeita, tornando Hamilton Naki num cirurgião clandestino.

O seu talento deu frutos e em breve era considerado dos melhores, dando aulas aos estudantes brancos, embora auferindo um salário de técnico de laboratório, o máximo que o hospital podia pagar a um negro.
Vivia numa barraca, numa qualquer Township, sem luz eléctrica ou água canalizada.
Hamilton Naki ensinou cirurgia durante 40 anos e reformou-se, já na era Mandela, com uma pensão de jardineiro, de 275 dólares por mês.
Em boa hora o regime pós apartheid soube da história e corrigiu erros também cometidos, tendo-o condecorado e atribuído o grau académico Honoris Causa em Medicina.
Durante o regime bóer racista não havia sido reconhecido pela cor da sua pele e depois, pelo regime pós apartheid por ter colaborado com os brancos.
Este homem excepcional, na dimensão humana, académica e técnica morreu sem nunca reclamar das injustiças que sofreu a vida toda.

Conheci alguns Hamiltons nos cenários de guerra por onde passei, mas estes enfermeiros e paramédicos que operavam pessoas atingidas por estilhaços, tiros, derrocadas de edifícios e outras causas da guerra, faziam-no também sem ter autorização para isso e, quando do regresso aos seus países, também a Portugal, os oficiais médicos eram condecorados, eles eram esquecidos.
Um inspector médico das Nações Unidas de visita a um dos Hospitais de Sarajevo para avaliar da situação, quando soube que mais de 70% dos operados o eram por pessoal não médico ficou com uma cara de dar dó, tal a perplexidade e a crença de que tal seria impossível.
Observar um paramédico ou socorrista em acção debaixo de fogo é algo que nunca mais esqueço. A sua disponibilidade física e fé na crença da salvação de vidas são a mesma que move os bombeiros. Na Avenida Obala Kulina Bana, sob fogo de armas ligeiras dos sérvios, Carl Willbur Torensën, um cabo americano de origem sueca, saltou para o centro da avenida onde várias pessoas se contorciam com dores e lançando gritos…uivos de dor, após o rebentamento de uma granada de morteiro.
Carl, de 24 anos de idade, debaixo de fogo e desarmado, desafiando todos os deuses do mal, saltou para o meio do horror começando a socorrer pessoas e a colocá-las ao abrigo do fogo sérvio.

Abrigado atrás de um depósito de água caído mas não quebrado, não sei durante quanto tempo admirei aquele espectáculo, tentando localizar exactamente de onde os sérvios disparavam. Então, como que a uma ordem inaudível e invisível saltámos em frente e ajudámo-lo. Quando coloquei o meu primeiro “rebocado” atrás do muro da escola contei outros cinco “pensados” que já lá estavam. Aquele homem, havia socorrido, suturado, pensado, drenado, ajudado e “etiquetado” cinco pessoas antes de receber ajuda dos que, como eu, ficaram a ver um anjo a salvar vidas no meio do inferno.
O seu avô, sueco de segunda geração de emigrantes nos Estados Unidos, foi morto nas praias da Normandia no dia 6 de Junho de 1944, salvando vidas e tendo sido condecorado a título póstumo por ter socorrido 17 homens debaixo de fogo antes dele mesmo ter sido morto.
Nessa noite bebemos pelos que se salvaram e pelos que morreram, aos incólumes não se brinda, excepto a Carl, que espero, após o seu regresso aos EUA, tenha completado a Escola Médica e esteja num qualquer lugar a fazer o que gosta.