sexta-feira, fevereiro 08, 2008

A Essência

O ALENTEJO

Palavra mágica que começa no Além e termina no Tejo, o rio da portugalidade. O rio que divide e une Portugal e que à semelhança do Homem Português, fugiu de Espanha à procura do mar.
O Alentejo molda o carácter de um homem. A solidão e a quietude da planície dão-lhe a espiritualidade, a tranquilidade e a paciência do monge; as amplitudes térmicas e a agressividade da charneca dão-lhe a resistência física, a rusticidade, a coragem e o temperamento do guerreiro. Não é alentejano quem quer. Ser alentejano não é um dote, é um dom. Não se nasce alentejano, é-se alentejano.
Portugal nasceu no Norte mas foi no Alentejo que se fez Homem. Guimarães é o berço da Nacionalidade, Évora é o berço do Império Português. Não foi por acaso que D. João II se teve de refugiar em Évora para descobrir a Índia. No meio das montanhas e das serras um homem tem as vistas curtas; só no coração do Alentejo, um homem consegue ver ao longe.


Mas foi preciso Bartolomeu Dias regressar ao reino depois de dobrar o Cabo das Tormentas, sem conseguir chegar à Índia para D. João II perceber que só o costado de um alentejano conseguia suportar com o peso de um empreendimento daquele vulto. Aquilo que para o homem comum fica muito longe, para um alentejano fica já ali. Para um alentejano não há longe, nem distância porque só um alentejano percebe intuitivamente que a vida não é uma corrida de velocidade, mas uma corrida de resistência onde a tartaruga leva sempre a melhor sobre a lebre.
Foi, por esta razão, que D. Manuel decidiu entregar a chefia da armada decisiva a Vasco da Gama. Mais de dois anos no mar..., quando regressou, ao perguntar-lhe se a Índia era longe, asco da Gama respondeu: «Não, é já ali.». O fim do mundo, afinal, ficava ao virar da esquina.
Para um alentejano, o caminho faz-se caminhando e só é longe o sítio onde não se chega sem parar de andar. E Vasco da Gama limitou-se a continuar a andar onde Bartolomeu Dias tinha parado. O problema de Portugal é precisamente este: muitos Bartolomeu Dias e poucos Vasco da Gama. Demasiada gente que não consegue terminar o que começa, que desiste quando a glória está perto e o mais difícil já foi feito. Ou seja, muitos portugueses e poucos alentejanos.


D. Nuno Álvares Pereira, aliás, já tinha percebido isso. Caso contrário, não teria partido tão confiante para Aljubarrota. D. Nuno sabia bem que uma batalha não se decide pela quantidade mas pela qualidade dos combatentes. É certo que o Rei de Castela contava com um poderoso exército composto por espanhóis e portugueses, mas o Mestre de Avis tinha a vantagem de contar com meia-dúzia de alentejanos. Não se estranha, assim, a resposta de D. Nuno aos seus irmãos, quando o tentaram convencer a mudar de campo com o argumento da desproporção numérica: «Vocês são muitos? O que é que isso interessa se os alentejanos estão do nosso lado?»
Mas os alentejanos não servem só as grandes causas, nem servem só para as grandes guerras. Não há como um alentejano para desfrutar plenamente dos mais simples prazeres da vida. Por isso, se diz que Deus fez a mulher para ser a companheira do homem. Mas, depois, teve de fazer os alentejanos para que as mulheres também tivessem algum prazer. Na cama e na mesa, um alentejano nunca tem pressa. Daí a resposta de Eva a Adão quando este, intrigado, lhe perguntou o que é que o alentejano tinha que ele não tinha: «Tem tempo e tu tens pressa.» Quem anda sempre a correr, não chega a lado nenhum. E muito menos ao coração de uma mulher. Andar a correr é um problema que os alentejanos, graças a Deus, não têm. Até porque os alentejanos e o Alentejo foram feitos ao sétimo dia, precisamente o dia que Deus tirou para descansar.


E até nas anedotas, os alentejanos revelam a sua superioridade humana e intelectual. Os brancos contam anedotas dos pretos, os brasileiros dos portugueses, os franceses dos argelinos... só os alentejanos contam e inventam anedotas sobre si próprios. E divertem-se imenso, ao mesmo tempo que servem de espelho a quem as ouve.
Mas para que uma pessoa se ria de si própria não basta ser ridícula porque ridículos todos somos. É necessário ter sentido de humor. Só que isso é um extra só disponível nos seres humanos topo de gama.
Não se confunda, no entanto, sentido de humor com alarvice. O sentido de humor é um dom da inteligência; a alarvice é o tique da gente bronca e mesquinha. Enquanto o alarve se diverte com as desgraças alheias, quem tem sentido de humor ri-se de si próprio. Não há maior honra do que ser objecto de uma boa gargalhada. O sentido de humor humaniza as pessoas, enquanto a alarvice diminui-as. Se Hitler e Estaline se rissem de si próprios, nunca teriam sido as bestas que foram.
E as anedotas alentejanas são autênticas pérolas de humor: curtas, incisivas, inteligentes e desconcertantes, revelando um sentido de observação, um sentido crítico e um poder de síntese notáveis.

Não resisto a contar a minha anedota preferida. Num dia em que chovia muito, o revisor do comboio entrou numa carruagem onde só havia um passageiro. Por sinal, um alentejano que estava todo molhado, em virtude de estar sentado num lugar junto a uma janela aberta. «Ó amigo, por que é que não fecha a janela?», perguntou-lhe o revisor.
«Isso queria eu, mas a janela está estragada.», respondeu o alentejano. «Então por que é que não troca de lugar?» «Eu trocar, trocava... mas com quem?»


Como bom alentejano que me prezo de ser, deixei o melhor para o fim. O Alentejo, como todos sabemos, é o único sítio do mundo onde não é castigo uma pessoa ficar a pão e água. Água é aquilo por que qualquer alentejano anseia. E o pão... Mas há melhor iguaria do que o pão alentejano? O pão alentejano come-se com tudo e com nada. É aperitivo, refeição e sobremesa. E é o único pão do mundo que não tem pressa de ser comido. É tão bom no primeiro dia como no dia seguinte ou no fim da semana. Só quem come o pão alentejano está habilitado para entender o mistério da fé. Comê-lo faz-nos subir ao Céu!
É por tudo isto que, sempre que passeio pela charneca numa noite quente de verão ou sinto no rosto o frio cortante das manhãs de Inverno, dou graças a Deus por ser alentejano. Que maior bênção poderia um homem almejar?
zcc

33 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Bela descrição dos alentejanos e do Alentejo!!! Muito bela. Adorei ver em poucas linhas compilada a vossa idiossincrasia...
Não sou alentejana, nem tão sequer tenho raiz alguma na minha existência... O que acaba por ser bom!! Assim posso amar outras paisagens, outras terras, outras pessoas que não as "minhas".....
Partilho as tuas refleções sobre esse teu lugar e os seus habitantes. Eu amo-o também. Tenho um pouco de alma alentejana pelo meu percurso, e gosto do vosso modo de estar na vida.
Que a força dessa Terra não escape nunca da tua Alma e essa paixão te acompanhe e te ajude no dia a dia.
Boa semana.

09 fevereiro, 2008 12:55  
Blogger Barão da Tróia II said...

Excelente a descrição, o meu avô e o meu pai são alentejanos, o sentido de humor de que falas está lá, faz parte deles. Boa semana

13 fevereiro, 2008 13:59  
Blogger ALG said...

Recebi esse texto por e-mail, e também o apreciei imenso ( gostava de saber quem é o autor )descreve muito bem o que é ser Alentejano!

Abraço

13 fevereiro, 2008 18:47  
Anonymous Anónimo said...

PRECE DE UM PAI


SENHOR:
Dá-me um filho que seja bastante forte, para saber quanto é fraco, e corajoso, para se enfrentar a si mesmo quando tiver medo; um filho que seja orgulhoso e inflexível na derrota inevitável, mas humilde e manso na vitória.
Dá-me um filho cujo esterno não esteja onde deveria estar a espinha dorsal; um filho que me conheça e saiba conhecer-se a si mesmo.
Guia-o eu TE suplico; não pelo caminho fácil do conforto, mas sob a pressão e o orgulho das dificuldades e dos obstáculos.
Que aprenda a manter-se erecto na tempestade e a ter compaixão dos malogrados.
Dá-me um filho de coração puro e objectivos elevados; um filho que saiba dominar-se, antes de procurar dominar os outros; um filho que aprenda a rir, mas que não desaprenda de chorar; um filho que tenha olhos para o futuro, mas que nunca se esqueça do passado.
E depois de lhe teres concedido todas estas coisas, dá-lhe, eu TE rogo, compreensão bastante para que seja um homem sério sem, contudo, se levar muito a sério.
Dá-lhe humildade, SENHOR, para que possa ter sempre em mente a simplicidade da verdadeira grandeza, a tolerância da verdadeira sabedoria, a pequenez da verdadeira força.
Então eu, seu pai, ousarei murmurar: “NÃO VIVI EM VÃO”.

in D. AP RCMDS

14 fevereiro, 2008 19:25  
Blogger Isabel Filipe said...

Uma maravilha este teu Hino ao Alentejo ...

é a região de Portugal que mais aprecio ... inclusivé a gastronomia que mais gosto é a que é de lá...

beijinhos

17 fevereiro, 2008 17:44  
Blogger Manel do Montado said...

Caros amigos,

O texto não é meu, mas como retrata muito daquilo que sou, decidi colocá-lo aqui.
De facto nem sei de quem é o texto, a não ser que está "assinado" ZCC.

17 fevereiro, 2008 22:32  
Blogger lena said...

o texto está excelente, mesmo não sendo teu, consegui sentir-te

o alentejo é a minha paixão, penso que já o referi

amo-o com tanta força como a terra onde nasci em áfrica

foi ainda menina que aprendi os cantares alentejanos, as canções de natal e muito das suas vivências, tudo isso com alguns militares alentejanos de quem guardo um carinho especial

tu meu querido amigo, também és muito especial. dás-nos tanto nas tuas partilhas e aprendo sempre que te visito

beijo meu e um abraço onde o carinho e amizade são presenças

lena

19 fevereiro, 2008 17:16  
Blogger Parvinha da Silva said...

"ora bolas" escreveste-me tu, lá na coisa fechada.

"ora bolas, nada", digo-te eu; afinal, a gente vê-se por aí.

Um beijo amigo e sempre carinhoso, como mereces.

23 fevereiro, 2008 20:44  
Blogger Afrodite said...

claro que a gente se vê por aí, ora então! Quem bem se quer....

23 fevereiro, 2008 20:46  
Blogger Paulo said...

Um verdadeiro retrato....
O Alentejo é uma sinfonia de fel e sonho, outrora esquecida pelos rios, hoje banhada por promessas, rectórica e barragens incompletas. A sorte é que no peito dos alentejanos ainda "baila" o sonho de serem pássaros. Essa fantasia de Sol onde a esperança teve sempre morada certa.
Abraço
Paulo

02 março, 2008 23:23  
Blogger Odele Souza said...

Um belo texto Manel. É muito bom ler textos com a qualidade deste.

Amigo, não te vejo publicar há tempos. Estás bem?

Fica aqui o meu abraço e o meu desejo que tudo esteja bem contigo sim e que apenas estás dando um tempo. Pessoas como tu, fazem falta nesta blogosfera onde cada vez mais vamos criando afetos com pessoas que nos prendem pelas palavras. Tu es uma dessas pessoas.

03 março, 2008 19:08  
Blogger aDesenhar said...

Manel
garanto-te que um Transmontano,
depois de ler este texto,
também se sente Alentejano.

abraço

04 março, 2008 00:36  
Anonymous Anónimo said...

Um alentejano por Braga... Não será?

abraço

07 março, 2008 13:26  
Blogger jorge vicente said...

talvez uma bela alentejana.

por acaso, foi uma alentejana que me levou a redescobrir a poesia. e a escrever livros. infelizmente, não a tenho ao meu lado.

mas, a poesia continua cá.

um abraço
jorge vicente

p.s.
por falar em poesia, convido-lhe para um lançamento de um amigo meu. Aqui fica:

"A Edium Editores convida-o a participar na sessão de lançamento da obra “Travessia” do poeta José Félix, no dia 22 de Março de 2008.
O evento terá lugar no Porto Palácio Hotel, salão “3 Rios” às 16.30 horas
A obra será apresentada pelo poeta de Coimbra Xavier Zarco
Endereço: Avenida da Boavista nº 1269, Porto."

14 março, 2008 12:50  
Blogger Um Poema said...

...
Amigo,
De regresso (embora com muitas limitações de tempo ainda) ao convívio com os amigos, é bom encontrar-te de regresso também.
Este teu post é, além de um relato fabuloso do espírito e tenacidade de grandes filhos do Alentejo, um elencar de factos históricos, pedaços duma alma lusa cujas raízes o Tejo fecundou Aquém e Além Tejo.
Saúdo-te!

Um abraço

17 março, 2008 03:51  
Blogger Isabel Filipe said...

Olá Manel,

Venho desejar-te uma Santa e Feliz Páscoa.

Beijinhos para ti

20 março, 2008 10:28  
Anonymous Anónimo said...

Repetindo-me, mas com amizade aqui deixo:

Páscoa é vida nova
Esperança...luz...
A presença de Jesus
Que em todos se renova

Páscoa é deixar a prisão
De uma vida ensimesmada
Rompendo lápides, portas fechadas
Para ir ao encontro do outro, nosso irmão

Páscoa é fraternidade, amizade e comunhão
Um tempo para se estender os braços, abrir o coração
Para se doar...receber...partilhar...

Páscoa é sobretudo um momento para amar
Que nesta Páscoa, em Sua infinita bondade, o Senhor
Renove em todos nós a paz...a vida...o amor...

(Walter Pereira Pimentel)

22 março, 2008 16:37  
Blogger REVOLTA DE UM POVO said...

Lutem pela baixa dos preços do combustivel

http://anopossavoz.blogspot.com/

28 março, 2008 13:28  
Anonymous Anónimo said...

Contos : Mama Sume
Enviado por marcopintoc em 08/01/2008 02:10:00 (140 leituras internas) Contribuições deste autor

19 de Setembro 1965 , algures perto do Lago Niassa.

Uma rajada voou por cima da minha cabeça. Encolhi-me para metade de mim e rastejei até uma pequena pedra que era o único abrigo visível no meu curto campo de visão . « Merda do capim ».Algures uns vinte metros à minha esquerda, a voz do Sargento Tristão :
- Não responder ao fogo . Poupar munição , poupar munição – Depois um grito que apelava a alguém que já não iria responder – Matos ! Matos ! Onde é que estás com o cabrão do rádio?
Do flanco da linha veio a voz minhota do Paixão, antecedida por um grosso escarrar e um disparo da G3:
- O Matos foi-se Sargento. Meteram-lhe uma bala no bandulho – o tom forte da sua voz atrai mais uma rajada proveniente das árvores a nossa frente – foda-se.... turra de um cabrão ! – Um disparo . A voz do Sargento mais uma vez autoritária: - Não abrir fogo sem ordem !
Do lado oposto a Frelimo responde com apenas dois tiros. « Devem estar a ficar secos » - alegro-me um breve segundo - « tal como nós». No bolso apalpo a carta do adeus, tenho-a sempre comigo desde que vim para Africa. Penso que o cabrão do Salazar e o filho da puta que organizou esta saída pela picada é que deviam estar aqui, colados ao solo, imóveis , rezando que ,entre um tremular do capim embalado pelo vento do fim da tarde, a nossa cabeça não se torne visível a um atirador. Somos o que resta de um grupo de combate da 28º Companhia de Comandos. Dos vinte cinco homens que marcharam pela manhã restam menos de uma dezena. As minas, a falta de apoio aéreo e uns mapas de merda meteram-nos na boca do lobo.
- O rádio ?? Onde é que está o cabrão do rádio? – A impaciência do homem mais graduado . Nunca o ouvi tão irado.
- Foda-se Sargento, está com o Matos ! – Replica de novo o Paixão. Deve haver algo de muito incomodativo na sua voz densa e agressiva. Deve soar a colonialista pois os pretos abrem de novo fogo. De ambos os lados escuto o ruído dos corpos a minguarem misturados com a terra.
- Então vai lá buscar! Onde é que está?
- Vinte metros atrás de mim, Sargento – Algum desconforto no Paixão. É obvio que será ele a fazer uma viagem arriscada.
- Duas salvas de fogo de cobertura – a voz do duro homem que lidera a minha equipa é tão determinada que sinto que nada pode correr mal. Engatilho a arma, tiro manual. Dois disparos à voz de comando.
-Preparar . Fogo - a voz é firme na ordem. Os elementos que restam levantam-se em posição ajoelhada e fazemos fogo simultâneo sobre a linha de árvores onde se oculta o inimigo. Vejo com agrado a queda, já mortos, de dois turras mais descuidados que estavam demasiado expostos. O fogo foi preciso. Somos elite.
- Rádio – grita o Paixão. Está vivo. Bom para todos.
- Preparar! Fogo – a segunda rajada é mais difícil. O inimigo está precavido. Ao surgir das nossas figuras em ponto de fogo ripostará. Assim tal acontece.
À minha direita escuto um “Ahhh “ e tomba mais um soldado. O Ribeiro, atleta, pugilista. K.O em Moçambique. Por detrás de mim o restolhar do corpo do Paixão a rastejar para a posição do sargento. Rodo sobre mim e vejo-o:
- Paixão. Estás bem?
A resposta que recebo é um mero aceno atarantado de um rosto incrédulo de ainda existir. Rodo de novo para a posição de tiro.
Durante uns minutos persiste o silêncio. Quase absoluto, todos os sons da grande África calaram-se . Ocasionalmente um desafio:
- Português. Tu vai morrreeer - Após este final esganiçado ecoa da floresta um coro; “Uh!Uh!” e um tambor guerreiro. Aperto com força a coronha contra o ombro. Não há movimento. Voam apenas palavras na trincheira improvisada.
- Foda-se! Merda de material – pelo som é obvio que o Sargento está a desfazer à porrada um rádio inoperacional. Estamos tramados. Engulo em seco. Começo a ganhar a perfeita noção que de amanhã não passarei. Os primeiros sinais da estrelada noite do mato aproximam-se.
O Sargento passa palavra. Tentar retirar recuando – Devagar; muito devagar – aconselha.
Pelas 22h05 iniciamos o movimento. Como lagartos de camuflado deslizamos ,na lentidão que aprendemos no lodo. Olhos atentos e rastejar suave. Quero ser invisível. E sou-o.
O deflagrar de uma mina, a menos de quinze metros da minha direita , atira com restos do Paixão para cima de mim. Já cansado de ter visto tanta morte ao longo do dia não me sinto particularmente afectado pela perna que pousa perto do meu rosto.
Estamos encurralados. Atrás um campo de minas, em frente a desconhecida força hostil . À esquerda, o rio. O flanco direito, por onde chegamos ,é a linha de união entre a seara de explosivos e a capacidade de fogo do inimigo.
Alguém me sussurra, perto, muito perto:
- Viste aquilo pá ? O Paixão foi-se – era o Loureiro, o elemento mais estranho do meu grupo de combate. Filho de gente importante, finalista de teologia , abandonara tudo para ingressar na tropa mais dura , nós , os Comandos. Dele só nos rimos ao principio, era tão rijo como qualquer um de nós. Rezava todas as noites. Muitas vezes em silêncio a caserna escutava. Como se o menino do papá orasse por todos nós. Pela unidade.
Aceno que sim, que vi o Paixão morrer. Pergunto:
- Quantas balas tens?
O olhar preocupado responde:
- Quatro . Estamos bem fodidos, não estamos?
Embora o medo me inunde por todos os poros respondo com a frieza que aprendi na recruta:
- É fodido ser Comando – olho-o para ver se encontro alguma coragem – Comandos não morrem, Reagrupam-se no Inferno
Coberto pela escuridão conseguimos rastejar até junto uns dos outros. Somos sete. Dividi-mos munição; cinco tiros cada homem. O Sargento é o ultimo pai que iremos conhecer, por isso escutamo-lo em reverência atenta:
- Os gajos vão carregar pela primeira luz. Devem estar com pouca munição. Há duas horas que não disparam – o olhar percorre-nos com dureza. Uma ordem que não gosta de dar – Armar baionetas.
O treino militar corta o breve segundo de assombro e receio que nos invade. Com gestos precisos as nossas lâminas brilham ao parco luar e são colocadas junto à boca da arma.
Passam-me horas. Creio ter dormitado um pouco. Acordo sobressaltado pelo canto de um pássaro que ousou voltar às copas. Uma baixa neblina cobre o mato dando-lhe um aspecto de cemitério. Lembro-me de um filme de terror onde mortos caminhavam. A bruma era a mesma. Ocultava apenas a metade inferior do corpo. Os meus olhos alarmados percorrem o fino fumo, gélido como a morte que sinto a vir, procuro vultos , catanas no ar.
O tambor recomeçou. Pancadas graves e muito perto de nós.
Momentos depois, embrulhado em dois archotes surge um velho, o corpo pintado , o aspecto tribal é obvio . É um feiticeiro. Na mão agita o rabo ,ainda sangrando ,de uma cabra. Não me contenho. Tenho um bom ângulo e arrisco o disparo. Não acerto. «É impossível » penso horrorizado. «Nunca falho um tiro destes». O feiticeiro vira a sua atenção para onde estou. Tem um olhar insano. Os dentes foram afiados com limas. Aponta na minha direcção. A névoa traz uma voz intemporal e assustadora:
- Tu! Tu não mata – A cauda de cabra é agitada no ar.
Muito perto de mim o Loureiro ajoelha-se e faz fogo. Desta vez está lixado. O tipo é o nosso melhor atirador.
- Como é que? – Atónito o Loureiro mira a arma traidora.
Brusco o bruxo avança quatro passos determinados. Os que o acompanham com os archotes avançam. Estão desarmados, os seus olhos transtornados estão fixos no horizonte, para lá das nossas costas. De novo a cauda é agitada:
- Tu . Morre!!
Ergue os braços ao céu e brada algo numa língua ancestral. Dezenas de vozes negras entoam “ Noyi , Noyi , Noyi” O ritmo do tambor acelera. Eles começam a sair. Em passo lento, há algo de doentio e fanático no seu andar. Os corpos adornados para a batalha , longas laminas na mão. Vem para nós. Querem-nos trinchar. Preparo-me.
- Fogo! – A voz do Sargento faz-me saltar como uma mola e descarregar as quatro munições que me restam. São tiros que não causam baixas. Pelo coro de “foda-se” e “o que é esta merda? “ que escuto as nossas balas não atingiram um único alvo. Só nos resta a baioneta. Instintivamente procuro um companheiro. Encontro o Loureiro. Largou a arma. De joelhos, prece cravada no céu , reza alto. Sacudo-o:
- Atenção Comando! Ataque inimigo!
Duas mãos de unhas mal cortadas e imundas cravam-se no meu rosto. Os olhos têm a insanidade dos mártires:
- Tu não vês? Só Ele nos pode salvar. Só Ele!!!
As mãos voltam à posição de reza deslizando pelo meu rosto; cavando socalcos de sangue que ardem em contacto com o suor.
A voz do meu irmão de armas é a única voz que escuto. Dentro de mim o silêncio, preparo-me nas linhas do Padre Nosso para encontrar o meu fim.
Um grito de agonia corta o meu momento de fé. Vem do outro lado. Não entendo. Esforço o olhar pela neblina e parece-me ver um vulto de vestes longas correndo entre nós e os pretos.
De súbito ,outro grito, em língua de turra ;e outro , e outro. Brados de óbito começam a manar do lado inimigo. Pela quantidade o Sargento percebe que algo está a acontecer. Ordena numa voz de Marte:
- Comandos . Carga ! Mama Sume!
Gritando como loucos , baionetas caladas , passo de carga encontramos apenas dois pretos ainda vivos , furamo-los com rudes golpes. De resto tudo morto, a decepagem de membros , os profundos cortes não foram feitos pelas nossas laminas. São golpes de gládio bem maior.
Vagueamos por entre o que resta desta tropa superior em número. Não acredito no que vejo, não acredito ainda estar vivo.
Do fundo, já dentro do arvoredo, ecoa a voz de demónio do feiticeiro. Magia negra, ódio de escravo. Benzo-me:
- Noyi ! Noyi – desafia à distância.
Outra voz, esta lusitana, brada mais alto.
- Por El-Rei – o grito do bruxo cala-se
Ainda mais confuso olho em redor e procuro o Loureiro. Não está entre os que patrulham entre os bocados de turra. Volto a correr à nossa posição inicial. Encontro-o vivo, ainda em fervorosa oração. Tenho uma pergunta que me está a sufocar. Ajoelho-me e puxo-lhe o rosto para junto do meu :
- Ele quem ?? Loureiro . Ele quem ????
Uma catarata de lágrimas tomba sobre os lábios trémulos. Abraça-me junto a si, a força dos sobreviventes. Beija-me a cabeça e sussurra-me ao ouvido.
- O Condestável. O nosso Santo Condestável.
Há perplexidade em mim . Levanto-me e uso a mira telescópica ,que tenho direito como atirador especial, para vasculhar o horizonte. Já há muito dia no ar. Procuro, procuro e quando o encontro ajoelho-me.
Ao longe, em passo lento ,um homem de barba caminha . Enverga um traje de monge. À cinta balouça uma enorme espada cujo gume não brilha devido à pasta de sangue que o cobre. Vira-se em minha direcção e levanta um braço em saudação. O hábito, rasgado na zona do peito, revela uma cota de malha que reluz perante os primeiros raios de Sol.

28 março, 2008 16:24  
Blogger Menina Marota said...

A minha ausência tem-me afastado daqueles que sinceramente, desde a primeira hora, gosto de ler.

Já sabes, porque já um dia o referi, o que significa o Alentejo para mim, por isso não me vou repetir, mas este texto trouxe-me os cheiros e os paladares que sempre vivem em mim, recordando momentos inesquecíveis.

Deixo-te o meu abraço saudoso e mesmo ausente, és uma das pessoas que está no meu coração.
TL
;)

06 abril, 2008 17:42  
Anonymous Anónimo said...

"Manel" voltei e passei para deixar um abraço.

Saudações e um sorriso

17 abril, 2008 19:18  
Blogger A. João Soares said...

Uma ode ao Alentejo e ao alentejano. Merecida por aqueles a quem se refere. Estruturada e escrita com muita qualidade. Era desnecessário ser tão exclusivista!!! Por todo o País há gente válida, com outras qualidades e outros defeitos, diferente como se impõe num belo ramalhete. Digo isto para que os de outras províncias não fiquem irados, mas devem aceitar o desafio e propagandear também as suas terras.
Abraço
A. João Soares

20 abril, 2008 10:54  
Blogger Paulo said...

Abraço.
03/05/2008
Paulo

03 maio, 2008 19:51  
Blogger Cleopatra said...

" E o pão... Mas há melhor iguaria do que o pão alentejano? O pão alentejano come-se com tudo e com nada. É aperitivo, refeição e sobremesa. E é o único pão do mundo que não tem pressa de ser comido. É tão bom no primeiro dia como no dia seguinte ou no fim da semana. Só quem come o pão alentejano está habilitado para entender o mistério da fé. Comê-lo faz-nos subir ao Céu!"


AMEN!!

04 maio, 2008 20:18  
Anonymous Anónimo said...

Isto de falar em Alentejo pega-se?
Então tu também adormeceste?
Não há por aí mais um textito?Mesmo que não seja sobre os excelentes alentejanos.Cá mais para os nossos lados, com ou sem portas ou janelas...

abraço

09 maio, 2008 21:28  
Blogger Menina Marota said...

Passei para ler-te... deixo um abraço e um :))))

23 maio, 2008 12:59  
Blogger O Transmontano said...

Ainda bem que penso Alentejano.
Passei para dizer que tb estou vivo.
Como não respondes aos meus email's, deixo-te aqui um abraço de franca e sincera amizade.
Um abraço Bambino e boa sorte.

17 junho, 2008 17:52  
Blogger Menina Marota said...

Passei para ler-te e, saio desiludida...
Espero sinceramente, que estejas BEM.

Um abraço carinhoso :)

02 julho, 2008 13:56  
Blogger Paulo said...

Ainda espero encontra-lo por aqui,
Abraço
Paulo

17 julho, 2008 22:15  
Blogger Cris said...

Que delícia de texto!
Parabéns pela escolha!

beijinho

21 julho, 2008 01:34  
Blogger Cleopatra said...

Há muito tempo que não se escreve neste blog
E eu que vinha desafiar-te para escreveres uma cartade (des)amor.

02 agosto, 2008 22:19  
Blogger Isabel Filipe said...

que é feito de ti?



beijinhos e bom fim de semana

08 agosto, 2008 10:51  
Blogger Santana-Maia Leonardo said...

O texto Alentejo aqui publicado foi escrito por mim em 15 de Dezembro de 2005, publicado em várias revistas e jornais e faz parte do meu livro REXISTIR (http://www.editorialminerva.com/Santana-Maia-Leonardo.html), juntamente com o texto O ALENTEJANO (http://aracadoalentejano.blogspot.pt/) que também circula na net, a maior parte das vezes sem fazer referência ao seu autor.

Santana-Maia Leonardo

12 março, 2013 02:52  

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