quinta-feira, julho 13, 2006

Anjos sem asas...

Hamilton Naki, um sul-africano de 78 anos, faleceu no fim de Maio deste ano. A notícia não se propagou nas parangonas jornalísticas, mas a sua história é uma das mais extraordinárias do século 20. O consagrado órgão de comunicação social, "The Economist", contou-a no seu obituário numa das primeiras semanas de Junho passado, sob o título, “ O cirurgião clandestino”.
A vida deste homem e o que a sociedade sul-africana lhe fez, mesmo após o Apartheid, levam-me a crer que para além da alucinação paranóica do racismo, a perplexidade da segregação tribal ainda enoja mais.
Contarei a história à minha maneira, dando a minha interpretação dos factos, pois a alguns deles acedi por testemunho directo e também porque quis a vida que conhecesse alguns Hamiltons noutras paragens.

Hamilton Naki foi um grande cirurgião. Foi ele quem extraiu do corpo da dadora o coração transplantado para o peito de Louis Washkanky em Dezembro de 1967, na cidade do Cabo, na África do Sul, na primeira operação de transplante cardíaco humano bem sucedida.
Ainda hoje esse trabalho se reveste de especiais cuidados médicos para quem tem formação e não é qualquer um que o faz. O coração doado tem de ser retirado e preservado com o máximo cuidado. Naki era, talvez, o segundo homem mais importante na equipa que fez o primeiro transplante cardíaco da história, mas não podia aparecer porque era negro no país do apartheid. Ao contrário, o Chefe da Equipa de Cirurgia, o branco Christiaan Barnard, tornou-se uma celebridade internacional de um momento para o outro.
Mas Hamilton Naki não podia sequer aparecer nas fotografias oficiais da equipa e quando por lapso apareceu numa, o hospital fez circular uma nota de imprensa dizendo que se tratava de um auxiliar de limpeza.
Hamilton Naki vestia na altura uma bata e máscara cirúrgicas, estranha indumentária para um auxiliar de limpeza.

Hamilton, abandonou a escola aos 14 anos e foi trabalhar como jardineiro na Escola Médica de Cape Town (Cidade do Cabo), onde, face à sua habilidade manual e excepcional capacidade de aprendizagem, se tornou no faz-tudo da clínica cirúrgica da escola, lugar onde os médicos brancos treinavam as técnicas de transplante em cães e porcos.
Começou por limpar os chiqueiros e os canis e foi aprendendo cirurgia por observação, enquanto assistia às experiências com animais. Nas horas vagas lia alguns manuais médicos e tornou-se um cirurgião excepcional, ao ponto de Barnard o ter requisitado para sua equipa, exigiu-o até.
Tal imposição constituía uma violação clara das “leis” racistas e incompreensíveis da África do Sul, uma vez que o Kaffir Naki, não podia operar pacientes nem tocar no sangue de brancos, apesar da exigência de C. Barnard ter sido satisfeita, tornando Hamilton Naki num cirurgião clandestino.

O seu talento deu frutos e em breve era considerado dos melhores, dando aulas aos estudantes brancos, embora auferindo um salário de técnico de laboratório, o máximo que o hospital podia pagar a um negro.
Vivia numa barraca, numa qualquer Township, sem luz eléctrica ou água canalizada.
Hamilton Naki ensinou cirurgia durante 40 anos e reformou-se, já na era Mandela, com uma pensão de jardineiro, de 275 dólares por mês.
Em boa hora o regime pós apartheid soube da história e corrigiu erros também cometidos, tendo-o condecorado e atribuído o grau académico Honoris Causa em Medicina.
Durante o regime bóer racista não havia sido reconhecido pela cor da sua pele e depois, pelo regime pós apartheid por ter colaborado com os brancos.
Este homem excepcional, na dimensão humana, académica e técnica morreu sem nunca reclamar das injustiças que sofreu a vida toda.

Conheci alguns Hamiltons nos cenários de guerra por onde passei, mas estes enfermeiros e paramédicos que operavam pessoas atingidas por estilhaços, tiros, derrocadas de edifícios e outras causas da guerra, faziam-no também sem ter autorização para isso e, quando do regresso aos seus países, também a Portugal, os oficiais médicos eram condecorados, eles eram esquecidos.
Um inspector médico das Nações Unidas de visita a um dos Hospitais de Sarajevo para avaliar da situação, quando soube que mais de 70% dos operados o eram por pessoal não médico ficou com uma cara de dar dó, tal a perplexidade e a crença de que tal seria impossível.
Observar um paramédico ou socorrista em acção debaixo de fogo é algo que nunca mais esqueço. A sua disponibilidade física e fé na crença da salvação de vidas são a mesma que move os bombeiros. Na Avenida Obala Kulina Bana, sob fogo de armas ligeiras dos sérvios, Carl Willbur Torensën, um cabo americano de origem sueca, saltou para o centro da avenida onde várias pessoas se contorciam com dores e lançando gritos…uivos de dor, após o rebentamento de uma granada de morteiro.
Carl, de 24 anos de idade, debaixo de fogo e desarmado, desafiando todos os deuses do mal, saltou para o meio do horror começando a socorrer pessoas e a colocá-las ao abrigo do fogo sérvio.

Abrigado atrás de um depósito de água caído mas não quebrado, não sei durante quanto tempo admirei aquele espectáculo, tentando localizar exactamente de onde os sérvios disparavam. Então, como que a uma ordem inaudível e invisível saltámos em frente e ajudámo-lo. Quando coloquei o meu primeiro “rebocado” atrás do muro da escola contei outros cinco “pensados” que já lá estavam. Aquele homem, havia socorrido, suturado, pensado, drenado, ajudado e “etiquetado” cinco pessoas antes de receber ajuda dos que, como eu, ficaram a ver um anjo a salvar vidas no meio do inferno.
O seu avô, sueco de segunda geração de emigrantes nos Estados Unidos, foi morto nas praias da Normandia no dia 6 de Junho de 1944, salvando vidas e tendo sido condecorado a título póstumo por ter socorrido 17 homens debaixo de fogo antes dele mesmo ter sido morto.
Nessa noite bebemos pelos que se salvaram e pelos que morreram, aos incólumes não se brinda, excepto a Carl, que espero, após o seu regresso aos EUA, tenha completado a Escola Médica e esteja num qualquer lugar a fazer o que gosta.

16 Comments:

Blogger ALG said...

Por um herói fabricado artificialmente e com fins duvidosos, felizmente existem muitos que preenchem todos os requisitos de um Herói a sério e quem como tu tão bem o fazes, os tira da sombra e os revelas!
Obrigado Manel, sinceramente!
No meio deste lodo ainda existe algo que nos faz acreditar na raça humana, apesar dos tristes exemplos que por aí andam a "poluir" a nossa existência.
Um abraço!

13 julho, 2006 22:48  
Blogger lena said...

Hamilton um nome que não se esquece

um herói certamente, quem sabe se um dia não será um mito, para mim já o é...

O racismo continua a fazer vítimas e a separar os "homens"

partilhas temas que me adsorvem totalmente, esta tua forma de escrever, prende-me e deixa-me a ler-te sem contar o tempo, pois sempre um ler e reler e reler até me saciar

um beijo meu querido amigo Manel

lena

13 julho, 2006 22:50  
Blogger Princesola said...

Estes anjos sem asas fazem-me sentir tão pequena...

Tens uma forma de escrever inimitável. Parabéns,
Bjs,

14 julho, 2006 15:47  
Blogger O Transmontano said...

Espectacular relato.
Música líndissima, a casar na plenitude com o texto.
Efectivamente, cada um nasce com os seus atributos.
Há quem nunca os potencie, mas, também há, aqueles que como tu, nos dão o prazer de minutos felizes....
Obrigado...
Um abraço.

15 julho, 2006 22:24  
Blogger Barão da Tróia II said...

A nossa sorte são os hérois que existem e que nunca chegam à TV, esse são os verdadeiros. O resto são quimeras, sonhos desfeitos e ilusões. Excelente post e boa semana

17 julho, 2006 14:56  
Blogger © Piedade Araújo Sol (Pity) said...

Interessante!!

E deste um titulo muito sugestivo..

17 julho, 2006 20:10  
Blogger Um Poema said...

Conhecia parte da história de Naki. Fiquei a conhecê-la melhor e agradeço-te. Triste é, porém, ter chegado a ser agredido fisicamente, por racistas de cariz inverso, acusado de ter colaborado com a equipa de brancos.
A história de Carl, é digna da nossa admiração. Essa, como a de tantos outros 'Carl' desconhecidos é, infelizmente, mais comum do que as notícias deixam saber. Houve-as entre nós, de 1961 a 1974. Não têm direito, porém, nem a medalha nem a notícia. Essas, umas e outras, são destinadas aos 'compadres'.
É que destes é que hão-de vir os dividendos.

18 julho, 2006 02:10  
Blogger Menina Marota said...

Ainda há bem pouco tempo li a história do Dr. Hamilton Naki.
Um dia, talvez a sua extraordinária dedicação e altruísmo sejam devidamente contados e conhecidos, bem como de muitos outros heróis, cujo exemplo está aqui demonstrado, na pessoa de Carl Willbur Torensën.
Acredito que chegará o tempo em que eles serão conhecidos…Ipso facto...

Belo o fundo musical que escolheste...uma das musicas de Schubert que mais me toca...

Grata pela partilha.

Beijo de boa noite ;)

18 julho, 2006 02:59  
Blogger saltimbanco said...

Interessante ainda que pela negativa.

Bom trabalho.

Quanto ao Apartheid, para mim não se distancia tanto assim das segregações tribais, pelo contrário. São ainda tribos mais distantes...

Abraço.

18 julho, 2006 16:11  
Blogger maria said...

Extraordinário post,este, Manel! Herois anónimos, incógnitos pela cobardia de mentes pseudo superiores que afinal só o são na ignorância e na vileza... Mas ainda bem que há quem, como tu, os resgatam a um tão injusto anonimato...
Beijo

19 julho, 2006 11:03  
Blogger aDesenhar said...

3 mama sumae
para todos os Hamiltons.

abraço manel

19 julho, 2006 23:41  
Blogger Júlia Coutinho said...

Um texto excelente sobre um homem fascinante, mas onde consegues dar um toque pessoalíssimo com a força das tuas memórias dos tempos conturbados por que passaste.
Tens muito para nos dar, amigo Manel.
Um beijão para ti e... continua a escrever para que todos nos apercebamos da dimensão dos episódios recentes da nossa Historia.

Hoje, 20 de Julho, a nossa amiga Raquel faz anos.
Sugiro que visitem o seu blog e lhe dêem os parabéns. Ela merece !

http://apaginatantas.blogspot.com/

20 julho, 2006 13:56  
Anonymous Anónimo said...

Já li sobre ele...beijos.

21 julho, 2006 14:52  
Blogger Mikas said...

É incrível constatar como o ser humano tem tanto de podre como de heróico. Beijos e bom início de semana

23 julho, 2006 23:41  
Blogger Conceição Paulino said...

de um memoriale homenagem se trata. A seres de excepção k, por serem de excepão, por norma são empurrados p/ as frnajas,para o olvido seja qualseja a razão. Cor de pele ou outra e...se nãohouver inventam uma k servirá pq no fundo nenhuma tem kk validade. prtt, tanto faz.
Bj Manel

24 julho, 2006 07:32  
Anonymous Anónimo said...

Estou tentandoi descobrir o nme do filme que assisti em homenagem a ele que eu não consigo lembrar. Alguém sabe?
Grata
Edilene

03 março, 2008 14:58  

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