sábado, outubro 29, 2005

Sarajevo - Os Dias da Guerra

Em 1992, a Alemanha, a caminho da consumação da reunificação e pretendendo um “espaço vital” económico para oriente, numa verdadeira antevisão da necessidade de expansão do mercado europeu para leste, decide dar cobertura política e diplomática à independência croata e eslovena. Estava de novo ateado o fogo nos Balcãs.
Com os EUA empenhados militarmente no médio oriente, valendo-se dum desmoronar do império soviético e consequente incapacidade para intervir militarmente num país que havia sido sempre não-alinhado, aliás, o líder dos não-alinhados, ficou para segundo plano, na agenda da política externa dos EUA, a resolução do problema no fulcro da Europa.
A CEE, ainda denominada assim na altura, fica a braços com um problema para o qual não tem capacidade de dar resposta militar, uma vez que é Nato-dependente.
Entretanto, nos meandros políticos da velha Europa, onde a têmpera guerreira britânica contendia com um neo-germanismo ao estilo green-peace e com a arrogância francesa, criavam-se, com a apatia política, as condições para o renascer da selvajaria que apenas meio século antes havia lavrado pelo mundo e em especial na Europa.
Como nota pessoal, continuo sem perceber de onde vem a arrogância militar francesa, pois um país que tem como melhor força militar uma tropa estrangeira e teve como melhor chefe militar um Corso (que para os franceses é gente de segunda), sinceramente não alcanço de onde lhes virá o garbo.
Neste quadro, os líderes de origem sérvia da Bósnia, da Croácia e da própria Sérvia, assim como os seus congéneres bósnios e croatas nascidos noutros locais que não a sua origem étnica, viram ali a oportunidade de, finalmente, criarem os seus estados próprios e acabarem de uma vez por todas com a mistura étnica nas nações emergentes.
É neste contexto que é enviado para o terreno o primeiro grupo de observadores/monitores da CEE, que teriam por missão a protecção das populações, através da sua presença desarmada, assim como o relatar dos crimes de guerra perpetrados por quaisquer dos contendores.
Por outro lado, a NATO, com o consentimento da ONU, envia para o terreno equipas de observadores militares, aos quais cabia a missão oficial de observar o desenrolar das operações militares e uma outra, de natureza não pública, a qual consistia em referenciar militarmente todos os objectivos militares de todos os lados da barricada. Esta segunda missão poderia implicar o desaparecimento físico dos homens envolvidos, o que a suceder seria imediatamente assumido pelo governo do militar em questão pela afirmação de que o mesmo estaria a actuar por sua conta e risco, logo fora do âmbito das ordens recebidas. Assim sucedeu com militares norte-americanos, em Junho de 1994, a sul de Sarajevo.
No âmbito da primeira missão foi enviado para o terreno, a par de outros, o homem que vos quero dar a conhecer com esta história. Hoje vive, como sempre quis, junto ao mar, ali para os lados da Ericeira, de consciência tranquila e anónimo. Feliz? Julgo que sim.
Conheci-o nos meados da década de oitenta, há quase vinte anos, era então um homem ainda jovem e fazia-se acompanhar sempre, dentro do quartel, de um cão enorme de cor preta. De baixa estatura, a dar para o anafado, sempre sorridente e de verbo fácil, era o estereótipo do anti-herói. Era portador de um conhecimento da sua profissão e de uma cultura geral elevadíssimas, talvez por isso não tenha alcançado lugares mais cimeiros.
Encontrámo-nos um dia em Sarajevo, onde o comando da sua missão estava instalado num hotel que já havia sido objecto de mimos por parte da artilharia sérvia, colocada nos montes Trebevic a sul da cidade. Trocámos algumas impressões e lá fomos a uma reunião conjunta. Era para isso que eu ali estava.
Dias depois, já com a equipa que eu integrava bem internada em território onde os militares de um dos lados faziam questão de afirmar que não garantiam a nossa segurança, aguardávamos contacto rádio a confirmar encontro com uma patrulha onde vinha o Cod (nome que lhe dou agora).
De dia fazia um calor danado naquele mês de Junho, acompanhado em altitude por aguaceiros de grande intensidade e por um frio de rachar à noite. Acachapados no alto de uma elevação sobranceira a um cruzamento de estradas, nos montes Semerska, a norte de Sarajevo enquanto a XVI Divisão do I Corpo de Exército Bósnio atacava o exército sérvio vinda de norte, aguardávamos o contacto com a dita patrulha que nos iria retirar da zona, uma vez que os helicópteros que nos deveriam exfiltrar (evacuar), foram “aconselhados” a não sobrevoar a zona porque poderiam ser alvo de fogo hostil.
Tempos depois “cairia” um helicóptero holandês que não respeitou os “avisos”.
Já quase de noite, com o rumor da batalha bastante perto e o ruído incessante das colunas militares sérvias em retirada para sul, lá surgem os Jeeps pintados de branco, logo parados por um grupo de cerca de trinta Chetniks sérvios, colocados a cerca de cem metros do cruzamento, junto ao rio Bosna.
Descemos do local onde estávamos com as precauções que a situação impunha, cientes de que a qualquer momento tudo ou nada poderia suceder.
De repente, da outra estrada, surge um grupo de homens armados que imediatamente identifiquei. Eram elementos do exército da Federação Bósnio-Croata (Adiante FBC), que se preparavam para cortar a retirada aos sérvios ao longo da estrada Ilijas-Semizovac, a qual é paralela a uma importante rede ferroviária.
Estava o “caldo entornado”, assim que se reconhecessem mutuamente recomeçaria a carnificina. O Evans, sargento inglês do 2nd Para-Regiment, fez-me sinal e postou-se junto a uma rocha, cerca de trinta metros acima do cruzamento, com o “corta-relva” em posição. Nós fizemos o mesmo, uma vez que só os dos “Jeeps” sabiam que ali estávamos.
O Cod, apercebendo-se da aproximação dos antagonistas e de que nos teria de tirar dali, sai da viatura com aquele ar bonacheirão e no seu melhor inglês diz ao comandante Chetnik:
- Estávamos à vossa espera para nos garantirem a segurança e a passagem pela estrada para Sarajevo! – Não lhes podia dar a entender que estavam cercados e que a sua presença ali seria presa fácil dos homens da FBC.
Deixou um major espanhol a falar com os Chetniks e foi postar-se no meio da outra estrada, mandando acender as luzes dos veículos. A noite estava agora escura como breu e a brisa que soprava trazia o odor da guerra com ela.
A silhueta dos militares da FBC era agora mais nítida enquanto se aproximavam estrada abaixo, paralelos à nossa posição. Eram cerca de cinquenta, um grupo de combate. Quando os faróis se acenderam refugiaram-se na floresta, excepto dois que pareciam ser o comandante e um tradutor.
O Cod dirigiu-se a eles e disse-lhes que estava ali para garantir que a patrulha regressaria em segurança a Sarajevo, uma vez que já havia obtido o acordo dos sérvios que se encontravam “em grande número junto à margem do Bosna”, uns duzentos metros acima.
Ao mesmo tempo grita em português (sabia que eu ali estava), e estas palavras recordo-as bem:
- Manel da Vidiguera tira esses mecos daí que é para parecer que somos todos da mesma patrulha!
Comuniquei o dito ao meu líder e ele sorriu. Descemos a encosta e juntámo-nos ao Cod, tendo ele avisado para não haver cumprimentos efusivos não fosse que os outros suspeitassem de algo.
Chegados à estrada e obtido o acordo dos comandantes de ambas as forças para a nossa passagem para sul, o Cod convida-os então e aos seus adjuntos para selar o acordo com algo.
Ali naquele cruzamento a norte de Sarajevo, em vésperas de Santo António, com batalhas a decorrer em nosso redor, sob um “capot” de um Jeep e em copos de plástico, os comandantes das duas facções cumprimentaram-se e brindaram ao fim rápido da guerra e ao bem estar das suas famílias. Tudo sob os auspícios do Cod. Eu estive lá.
Dias mais tarde as rádios sérvias e bósnio-croatas, relatavam o episódio do “Diplomata do Vinho do Porto”, assim o soubemos pelas escutas e transcrições que a NATO fazia das rádios e comunicações dos beligerantes. Ainda hoje recordo com saudade a admiração que causou junto de outros militares estrangeiros, elevando bem alto o nome de Portugal.
Sei que não o condecoraram por este feito e por outros, pois a partir daí era chamado com frequência a resolver este tipo de “equinócios”. Ele também não o queria, mas houve alguém que colheu frutos disso, o Cod não.
Um dia, já após a sua saída das Forças Armadas, havia acabado de lhe entregar uma pequena lembrança de um grupo de amigos, dispersos por diversas Forças Armadas da NATO e que com ele haviam servido a paz nos Balcãs. Indiquei-lhe a placa gravada que acompanhava a lembrança. Leu-a, nada disse, olhou-me de frente com os olhos molhados e em seguida abraçou-me.
A placa contém um dizer do Padre António Vieira:
“Se serviste a Pátria e ela te foi ingrata, tu fizeste o que devias, ela o que costuma”.

segunda-feira, outubro 24, 2005

From Russia with Love.

A notícia atingiu-me como uma bomba. O Muro de Berlim havia caído e o leste da Europa começava a respirar novos ares. Recordei algum tempo, quando jovem, que passara naquela cidade com uma amiga dali natural, ainda no tempo do muro da vergonha. Onde quer que esteja desejo que esteja bem. Foi ela a mulher que contribuiu para limpar uma imagem distorcida que tinha do povo alemão. Recordei então a ponte aérea que salvou aquela cidade décadas antes e até as agruras a que foi sujeito o povo alemão nas mãos dos russos, após se ter livrado do Adolfo e sus muchachos.
A vol d’oiseau recordo que foi aquele facto histórico, entre outros ocorridos desde o início do papado de João Paulo II e por impulso deste, que proporcionaram a abertura ao desarmamento na Europa e à possibilidade de, pela primeira vez, os países da NATO e os do Pacto de Varsóvia se inspeccionarem mutuamente para aferirem do cumprimento do tratado que havia sido implementado para o efeito.
O tratado em questão, denominado Treaty on Conventional Forces in Europe (adiante CFE), tem como âmbito geográfico o território continental e insular compreendido entre as ilhas atlânticas dos países ocidentais e os Montes Urais, então em território da ex-URSS.
Dois anos volvidos e devido às políticas de abertura levadas a cabo por Mikhail Gorbatchov, sucedido por Boris Yeltsin, a URSS desmoronou e novas nações emergiram, não impedindo que o dito tratado prosseguisse os seus fins, dando inicio à sua vigência efectiva em 1992.
Os governos de várias nações encarregaram então os militares para aferirem do cumprimento dos termos do Tratado. Face a este novo desafio e face às três principais vertentes do mesmo; a jurídica, a linguista e a de conhecimento efectivo dos equipamentos militares, urgia preparar homens nessa área para o desempenho da missão. Para o efeito foi criada uma unidade sobre a qual impedia a tarefa de representar Portugal na prossecução dos fins daquele Tratado.
Houve, desde logo, quem se agarrasse com unhas e dentes à tarefa de impor uma imagem de competência e profissionalismo sério que obliterasse a imagem de um Portugal pequenino. O Furão foi um deles, quiçá, sem desprimor para qualquer jurista, o homem que mais entendia os mecanismos jurídicos do Tratado. Para além da formação que foi dando às novas vagas de inspectores, era o homem responsável pela resolução de qualquer “equinócio”, isto é, qualquer divergência interpretativa na aplicação das normas internacionais. O seu nome e a sua presença em qualquer inspecção eram sinónimos de seriedade, de profissionalismo, de patriotismo esclarecido, do afirmar do empenho de um pequeno país no ombrear com as grandes potências e não num seguidismo bacoco e despropositado. Durante mais de uma década, o prestígio de Portugal também foi obra do Furão, mais, foi a obra do Furão.
Outro homem, o Professor, cognome que justifica de pleno o seu conhecimento das matérias relativas a Troca de Informação sobre a qual Portugal se havia comprometido internacionalmente, é ainda hoje uma pedra angular no sucesso de qualquer inspecção e na consequente boa imagem de que Portugal gozou durante algum tempo.
É um homem de excepcional capacidade que só tem par na humildade com que explana o que sabe e tenho para mim que muito poucos haverão com a sua estirpe. Tive o privilégio de o ver bastantes vezes, após horas a fio como intérprete, de inglês para russo e vice-versa, tendo no meio de pensar a arrumação gramatical em português, ainda discutir pormenores técnicos com uma clarividência espantosa.
Quero com isto enfatizar que hoje a apreciação do desempenho é feita, pelos nossos congéneres de outras nações, ao nível individual e não ao nível de Equipa nacional. Tudo porque uma “coisa”, antes denominada cavalo, passou a gerir tal unidade e se propôs, desde o início, à destruição daquela, fazendo a vontade aos políticos que querem desacreditar as Forças Armadas e os militares.
Outros homens, como o Arquitecto e o Figas, com uma capacidade linguística menos fluente, deram cartas na forma diplomática de abordar e solucionar as questões mais diversas. Do primeiro recordo um discurso, ainda bem no início do Tratado, ou bem no fim da Guerra-fria, como queiram. As faces em redor da mesa estavam crispadas, pois havíamos sido antagonistas durante quase meio século e ainda ninguém havia descoberto a fórmula para quebrar o gelo. A inspecção decorrera bastante formal e de certa forma tensa. No almoço do penúltimo dia, ainda na base russa, chega a vez do Arquitecto botar discurso em resposta ao discurso do oficial comandante da unidade inspeccionada e sai-se mais ou menos com esta:
- Em tempos ensinaram-me que vocês eram o meu inimigo, o urso russo que queria dar cabo da Europa ocidental. Durante anos estudei os vossos equipamentos, símbolos e tácticas, via-os como seres malignos que queriam dar cabo do nosso modo de viver. Agora olhando-os nos olhos, vejo-os como camaradas de armas, como meus pares, como homens com as mesmas preocupações que as minhas; o criar a família em paz e prosperidade. Nós não somos políticos e ninguém como nós sabe o sofrimento que os povos passam se formos para a guerra. A nossa missão é pois, mostrar ao poder político dos nossos países que mais do que ninguém sabemos o valor da paz e que a queremos preservar para sempre. A partir de hoje não os conseguirei imaginar no outro lado da barricada, por isso brindo....
No outro lado da mesa havia olhos molhados e no de cá também, eu pelo menos. Do outro, do Figas, pai da calma e paladino do bom entendimento entre as pessoas, recordo uma situação em que, perto da hora de almoço, não aparecia uma chave para se abrir uma porta, estando o seu homónimo quase no ponto de perder as estribeiras com os seus subordinados. Vai o Figas, põe aquela máscara de indiferença sobre o que se estava a passar e pergunta ao intérprete se sabia qual o motivo de tanta espera. O outro disse-lhe que faltava contar um equipamento e que esse estaria guardado precisamente naquele hangar. Vai o Figas volta-se para o seu homónimo e pede ao interprete que traduza:
- Se você diz que o que falta está aí dentro eu acredito, não é necessário incomodar o homem da chave que se calhar já está a fazer o que nós devíamos estar também a fazer, isto é, a almoçar. Se quiser cá voltar de tarde para nos mostrar o equipamento, tudo bem, mas não fazemos questão.
É claro que o outro se sentiu imediatamente aliviado e aquele simples desanuviar de tempestade latente, apanágio do Figas, foi a porta que se abriu para o resto da inspecção. Voltámos lá da parte da tarde, o outro, não o Figas, fez questão.
Orgulho-me de ter servido com este tipo de homens, verdadeiros representantes do que Portugal de melhor pode oferecer ao mundo. Deles não se dá público testemunho oficial porque obliterariam de imediato os asnos que por aí zurram em excelentes imitações da língua portuguesa, da mesma forma que destronariam o compadrio instalado.
Há omens (sem erro) que não merecem ser homens, quanto mais chefes militares que são coniventes com um maneirismo pouco másculo em ascensão e uma governabilidade cega, surda e estúpida.
De outros, dos bons, escreverei em tempo oportuno. Tenho para mim que a história destes homens terá de ser contada um dia, sem o filtro dos oportunistas e carreiristas que estão nas Forças Armadas não para as servirem, mas sim para delas se servirem.
Lamento que nesta história, como noutras, vá o burro montado no velho e no rapaz. Mas não é esse o exemplo de Portugal ao mundo?
Carpe diem.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Basta de Bostas!

Em conversa de amigos aqui há meia dúzia de dias falou-se dos cortes no funcionalismo público, nas Forças Armadas, entre outros. A opinião foi unânime: Importa tirar o país da crise e acabar com algumas mordomias, mesmo que isso implique carregar outra vez o burro da classe média, da classe pagante ou lá o que lhe queiram chamar.
Tudo certo! Lá vamos ter de pagar mais por uma consulta, ou ser menos comparticipado no seu valor absoluto, o mesmo para os medicamentos, para a comparticipação escolar dos filhos, etc. A pergunta que me assalta constantemente é: Quem me garante que desta vez é que o país vai mesmo para a frente?
A resposta é óbvia e não há político, mentiroso convicto ou compulsivo que se preze que não me assegure que sim, que desta é que é.
A verdade é simples de explicar ao povinho mas eles não querem fazê-lo, não vão as massas interessar-se por política, economia e finanças e depois os seus “tachos” ficam ameaçados pela competência das novas gerações.
Nos meus tempos de faculdade estudou comigo, só até ao terceiro ano, um familiar dum ex-presidente da Assembleia da República, que face às notas que tirava e ao gosto que mostrava em frequentar a faculdade, várias vezes foi convidado a pronunciar-se sobre matérias que não haviam ficado bem esclarecidas da primeira vez. Mestres houve que o aconselharam a mudar de curso, pois aquilo era matéria simples de mais para tão iluminado cérebro. Eles, por muito catedráticos que fossem, não entendiam o sentido e o alcance das respostas dadas às suas perguntas.
Entre os colegas e como era uma pessoa de afável trato, nada pedante, era conhecido pelo “Pau e bola”, isto é, o pau é o um e a bola é o zero, logo o 10. Esta é a nota mínima com que se faz uma cadeira e era a preferida do rapaz. Gostos e capacidades não se discutem.
As razões da insistência eram familiares e o seu sentido do dever impunha-o, não havia linhagem causídica na família? Não era ele ainda um jovem que poderia dar-se ao luxo de perder alguns anos a consolidar conhecimentos adquiridos, nem que fossem por repetição? Acabaria o curso, não restassem dúvidas disso. Não havia prometido em Fátima dez velas do seu tamanho quando finalmente lhe chamassem doutor? Promessas são promessas.
Aquilo é que foi um curso arrancado a ferros. Houve lugar a provas orais realizadas à porta fechada só para ninguém aferir da excelência de resposta com que o rapaz surpreenderia os mestres. Tal excelência de oratória, que certamente envergonharia os colegas, teria de ser recatada da sensibilidade auditiva de outros alunos. Não se poderiam sentir inferiorizados. Afinal não primava aquela casa pela igualdade de tratamento de todos os alunos? Iria agora tornar-se espectáculo público a sublime oratória de tal iluminado?
Esta prática, seguida posteriormente pela amiga, namorada ou lá o que é de um dos envolvidos no caso Casa Pia, começou a ser prática regular até que um MESTRE a interpelou dizendo-lhe: “Sente-se envergonhada por a estarem a ouvir? Não tem dom de oratória? Então escolheu o curso errado!”.
As más-línguas na altura diziam que algumas destas orais eram diferentes das do outro, uma vez que eram executadas em genuflexão, já que o amigo, namorado ou lá o que é, tem outras apetências. Dizia-se!
É claro que o MESTRE que acabou com tal benefício teve as suas agruras. Houve até quem lhe quisesse mover um processo disciplinar por intimidação de examinandos.
Há relativamente pouco tempo cruzei-me com o dito moço que, obviamente, não me reconheceu, isto é, fingiu que não me viu. Está bem empregado, conseguiu a licenciatura ao final de 8 matrículas num curso de cinco. Está num ministério qualquer a vencer quase três mil euros por mês. Diz-se que passou três meses pela banca privada mas que não tinha jeito para contas. Mais tarde passou pela PT, onde estão empregados filhos de presidentes da República, de professores universitários, deputados, ex-ministros, etc. Não lhe agradou o emprego, parece que o punham a tirar fotocópias e a ler processos arquivados, nada que estivesse ainda pendente, não fosse o diabo tecê-las. Agora está num ministério e é minha convicção que facilmente passará despercebido no meio dos outros boys, quer seja pela gritante falta de jeito para as codificações, quer pela evidente incompetência a que já nos habituou a classe política e seus afilhados.
As interrogações permanecem. Face a estes casos e muitos outros, seremos nós que continuaremos a pagar as reformas dessas personalidades asnáticas? O que fizeram de positivo para as merecerem? Que mérito académico, científico ou outro tiveram para ocupar um lugar que seria obviamente mais bem entregue nas mãos de um competente?
Para quando a publicidade das provas nos concursos para cargos públicos?
Para quando casas para os efectivamente pobres e não para indivíduos, ciganos e não ciganos, com Mercedes parados à porta?
Para quando a responsabilização dos titulares de cargos públicos pelos atropelos à lei e não a responsabilização ao órgão em si enquanto ente abstracto?
Até onde nos vamos calar sabendo já o futuro das gerações vindouras se nada fizermos?
A certeza de que estas questões ficarão sem resposta é absoluta e é por isso que me nego a apertar a mão a qualquer político. Não o merecem, não são dignos da minha atenção, educação e cordialidade, pois eles não sabem o que isso é.
Falo e escrevo sem medos, pois até hoje só duas coisas me caíram do céu: chuva e caca de pássaro. Já tentei que alguns artigos fossem publicados no espaço reservado ao correio do leitor, em alguns jornais de renome, não quero outro espaço. Nada, nem resposta obtive. Depois venham falar em liberdade de imprensa e de opinião, como se nós não soubéssemos que estão todos manietados pelos interesses corporativistas e económicos que regem as sociedades de informação.
Isenção? A única que conhecem é a que lhes aproveita ao nível da fiscalidade.
Deixo-vos com uma última interrogação: Como é que num mesmo país, sob uma mesma Lei Orgânica de Funcionamento dos Tribunais Judiciais e um mesmo Código de Processo Penal, o caso “Joana” já está em fase de elaboração de sentença e no “Casa Pia” ainda a procissão vai no adro?

quinta-feira, outubro 06, 2005

Potius mori quam foedari*

Ei gaiato, ei! – Tu aí, onde vais?
Aquela voz era inconfundível, o meu avô tinha um vozeirão directamente proporcional à sua bondade. Não me reconheceu, a vista já lhe ia faltando e usar óculos era impensável.
- Vou ó montado, a avó pedi-me pra ver se já há espargos! – Respondi.
- Ah! És tu. Já fizeste os deveres todos ca prossôra mandô? – Perguntou.
- Já avô, agora vou ao montado que se faz tarde e ainda quero cortar um galho pra fazer uma fisga.
- Na te empoleres nos sobreros altos que os troncos tão escorregadios da chuva.
- Tá bem! – Respondi enfadado com tanta recomendação, repetida vezes e vezes sem conta. Tudo por carinho e preocupação.
-Vê lá não me espantes o animal, dexó comer o pasto que rebentô agora cas chuvas!
Referia-se ao Paquito, animal de pelagem maioritariamente ruça, de grande porte e raça asinina. Faço questão de o chamar assim porque se lhe chamasse burro estaria a equipará-lo a muitos outros bípedes que conheço. Note-se, por exemplo, que os políticos que se digladiam na televisão não se tratam por mentirosos, mas dizem que o antagonista não está a dizer a verdade. Assim era eu com o Paquito, nunca o tratei por burro, sempre pelo nome e acredito que o bicho me compreendia melhor do que muitos da minha espécie.
Por vezes, quando me sentava encostado a um sobreiro para ler um livro qualquer, lá vinha ele mirar por cima do meu ombro, assim como quem também quisesse ler. Sabe-se lá!
Tinha uma particularidade, ria quando nós nos riamos, mostrando aquela enorme dentuça e abanando com a cabeça. Fui crescendo e a lembrança do Paquito foi-se esbatendo, apesar de nunca definitivamente esquecido. Já pouco me lembrava dele quando dei de frente com um bípede que o fez regressar à minha memória.
A animalária era conhecida por “cavalo” junto daqueles que com ele privaram mais de perto. Nunca um solípede sofrera tão vil comparação. Convenhamos, atribuir a tal besta qualidades próprias de um equídeo, tais como a nobreza, a fidelidade, a inteligência, o brio, o porte, a altivez, a par da valentia e da intrepidez, é o mesmo que comparar o ânus com a feira de Borba.
Mas porque raio teimava eu em me recordar do Paquito? O que tinha aquele asinino a ver com este “cavalo”? O riso não era porque este só sorria na presença de alguém que lhe fosse superior na hierarquia ou para algum bufo de estimação. Que seria então?
Recentemente, numa das minhas visitas frequentes ao meu Alentejo, lá voltei ao local onde me retirava para ler. Flash! Já está! Recordei-me do porquê da comparação. Urgia telefonar para o Comité Nobel ou para o Guiness Book of Records, havia descoberto um fenómeno da transmutação celular e do comportamento. Com prova científica e tudo. Um cavalo a falar já havia, quem não se recorda do Mister ED? Um asinino, repito, não um burro, a rir, já tínhamos o Paquito. Agora, um primata, apesar do polegar em oposição, apelidado de cavalo, com aspecto muar e comportamento de gebo, convenhamos que não é vulgar, mas ali estava.
Elegera como objectivo primeiro da sua vida a destruição de qualquer rasto de erudição ou cultura, ele e só ele poderiam deter o conhecimento e a verdade absoluta. Ai de quem se opusesse!
Para a prossecução dos seus fins arregimentou um tipo único de ser umano, não, não é erro, é mesmo assim, humano com h só quem de facto o merece ser. Retomemos; o arregimentado é um ser com enorme capacidade delatória, espongiforme, com apetência inata para lamber esfíncteres e dá, vox populis, pelo nome de bufo. A relação histórico-cultural estabelecida entre ambos estava desde o início invertida. Agora era o animal que havia domesticado o omem, tornando-o proscrito para os da sua espécie mas garantindo-lhe um habitat muito próprio de preservação, o eco-bufosistema.
Assim “montou” o cavalo (mais um paradoxo), a sua teia para destruir todos aqueles que lhe eram cívica e intelectualmente superiores. Há quem jure que o dito é portador de uma anomalia orgânica crónica, uma vez que parece ter o cólon descendente ligado ao cérebro, daí talvez a explicação para a quantidade inusitada de solturas cerebrais e ideias dejectas que tinha. Esquecera, ou desconhecia, que os genes da inteligência não são dados à porta de qualquer instituição académica, antes são-no no momento em que o vencedor do Grande Prémio Espermatozóico atinge o óvulo. Sem nenhum rigor científico sou pela afirmação que nem sempre o espermatozóide vencedor é o melhor, daí o haverem abortos com nove meses de gestação. Este é um deles.
Tentou, o abjecto, aliciar para a delação e para a conivência com a sua descarada incompetência uma alma que não se vendeu por meia dúzia de viagens à estranja e ajudas de custo correspondentes e para as quais o metamorfoseado tinha o poder de nomear quem lhe aprouvesse, embora jamais os mais competentes ou os mais habilitados. Por troca pedia relatos completos de tudo o que se passava na estrebaria, digo, no serviço por ele dirigido. Mas o chefe teria de parecer ser o mais capaz, daí o enviar dos menos qualificados que ele, o que, diga-se em abono da verdade, era tarefa difícil. A tal alma prezava mais valores morais do que os da bolsa de valores, acabando por ser distinguido com o prémio de “Ódio de estimação do ano” e a partir daí passou a ser a figura central do jogo de setas que o equídeo, hábil e disfarçadamente, pendurou por detrás da porta da box, digo, do gabinete.
O ferrado jamais havia encontrado alguém que dissesse não às suas manigâncias. Pensava ele, naquele cérebro inculto mas recheado de alimento para oxiuros, que jamais alguém resistiria ao apelo dos cifrões e das viagens. Enganou-se, e toda aquela sedução pútrida se transformou num ódio de proporções iguais à sua bestialidade. Tenho para mim que valores como a amizade, o amor, a fidelidade, entre outros, são absolutos, isto é, não se ama ou se é amigo a X%, ou se é ou se não é. Em valores que interferem com a confiança que outros depositam em nós, não podemos ser percentuais, ou somos ou não somos. O quadrúpede não entende isso, não lhe está nos genes e, como acontece amiúde na história das organizações, não sendo desejado em lado nenhum, acabou a puxar uma carroça que é, para o mal ou para o bem, um dos espelhos do país lá fora. Que bem representados estamos. É mais uma vez o meu “portugalzinho” que prefere a suficiência à excelência.
Se instâncias superiores sabem disto? Claro que sim! A mensagem chegou-lhes, mas a agenda e o compadrio político, para além de terem de reconhecer que erraram na nomeação, impedem-nos de agir. O que fazer quando no âmbito das incompatibilidades para o exercício da advocacia um ex-chefe militar, então no activo, logo abrangido por uma incompatibilidade, estagiou precisamente no escritório de advogados do actual Presidente da República? Em que condições o fez? Com que cobertura legal?
Medos? Tenho alguns, mas seguramente não passam pelo enfrentar de cobardes, compadres e alguns políticos corruptos com o rabo preso e comprometidos com cores partidárias. Acredito na justiça e no direito que lhe é subjacente, mas não em algum direito positivo que lhe é avesso. Todas as noites, sem excepção, quando encosto a cabeça à almofada durmo um sono tranquilo a nível de consciência. No entanto, por vezes é atormentado pela promoção constante da incompetência, porque isso, fatal e inexoravelmente, afectará as gerações futuras, os meus e os vossos descendentes. A prová-lo estão centenas de quadros de empresas estrangeiras em Portugal e no estrangeiro que não conseguiram entrar nas empresas do Estado.
* Antes a morte que a desonra.