sábado, janeiro 27, 2007

E Deus virou costas...

Deus virou as costas a esta gente! – Disse Evans com uma voz de desalento e resignação. Ali estávamos nós, atirados para o meio do caos como testemunhas impotentes da carnificina que continuava.
Um rapazinho subia a colina com um carrinho cheio de pertences ou despojos. Pau!...Um estampido seco anunciou o tombar do seu corpito como um boneco de trapos. De onde estávamos ouvíamos as palmas e as gargalhadas dos assassinos e tivemos de nos acalmar mutuamente para não saltar em frente a abatermos aqueles…comprometeríamos a missão e eu já estava farto de perseguições.
Stefan chorava lembrando-se da mulher e dois filhos assassinados pelos sérvios dois anos antes. Haviam cometido o “crime” de serem croatas nascidos em terra reclamada pelos sérvios.
O êxodo de Gorazde e aldeias limítrofes começara agora que os sérvios voltavam após terem sido bombardeados pela NATO, facto que deu uma certa esperança àqueles que não fugiriam da primeira vez.
Após a revelação das fotografias por satélite alguém lá muito atrás na cadeira do poder deu finalmente razão àqueles que colhem a informação no terreno em primeira-mão. O que eram povoações intactas em Março de 1994, um mês depois estavam destruídas, saqueadas ou ocupadas por sérvios. Os homens entre os 15 e os 70 anos que não fugiram, foram executados. As suas mulheres filhas, irmãs, cunhadas ou amigas, haviam sido violadas e violentadas vezes sem conta. Às grávidas foram-lhe arrancados os filhos do ventres como se estripa um animal e para ali as deixaram a esvair-se em sangue. Algumas abanavam os fetos como que tentando que vivessem. Ainda as ouço como se estivessem aqui ao meu lado.
- O diabo está a ganhar a corrida às almas! – Disse outra vez Evans, ao mesmo tempo que tentava acalmar Stefan.

Estávamos outra vez naquelas missões de recolha de informação. Haviam passado apenas dez dias que saíramos daquelas montanhas e agora regressávamos para confirmarmos o que já havíamos relatado. Algum filho de uma profissional de bater passeios havia duvidado de nós. Apesar da informação jornalística, sempre subestimada pelos decisores, havia a nossa, a dos profissionais do horror, dos voyeurs da morte e ainda assim duvidavam?
Adquirira a capacidade de identificar todo o tipo de equipamento, armamento e distintivos dos exércitos dos países de leste e portanto era necessário ali. Estas sub-equipas de três homens, pertencentes a equipas de nove, foram, pela sua especificidade, a génese das equipas de inspecção do tratado de controlo de armamento na Europa (CFE Treaty).
Éramos infiltrados em território hostil para, resumidamente, localizar, identificar, contar e informar da quantidade de armamento, equipamento e homens das forças inimigas. Um tinha a responsabilidade de contar, outro de identificar o tipo e o terceiro anotava e enviava o relatório para a retaguarda. Ali estávamos há dois dias e as colunas sérvias com diverso tipo de material não paravam de circular para oeste, bem para as nossas costas. Preparava-se algo em grande.
Se algo nos acontecesse a ONU lavaria as suas mãos e a NATO afirmaria que nos perdêramos. Ainda hoje ninguém explicou o que aconteceu a um canadiano, um belga e um norte-americano. Afogaram-se num rio, disseram às famílias…

Lembrando-me da última vez que ali havia estado e da fuga pelo rio Drina abaixo, levava calçadas as botas que trouxera de Portugal; modelo dos Fuzileiros. São mais fáceis de calçar e descalçar e como não tem cordões não se prendem nos silvados, em raízes ou em ramos rasteiros que ao soltarem-se fazem barulho e podem denunciar a nossa posição.
Stefan estava inconsolável e quebrando todas as regras havíamos levado Rakia, uma aguardente local, a qual lhe demos para o acalmar. Murmurava qualquer coisa incessantemente e finalmente adormeceu. A noite aproximava-se e sabíamos por experiência que de noite os lobos caçam melhor. Iria ser mais uma a ouvir gritos, tiros e o crepitar das chamas dos incêndios das casas.
Ao amanhecer recebemos via rádio a informação que o sub-team de Carlo, Mike “The razor” Wilkinson e Esteban, havia caído nas mãos do exército regular sérvio. Recebemos ordem para exfiltrar em direcção ao sul. A missão da ONU em Gorazde iria tentar negociar a libertação dos nossos camaradas. Soubemos mais tarde que Carlo havia sido evacuado para um hospital sérvio porque tinha fracturas múltiplas numa perna provenientes da queda de um penhasco, facto que havia denunciado a posição daquele sub-grupo, apenas a escassos mil metros da nossa posição. Regressou a Itália, após negociações entre Belgrado e a Cruz Vermelha Internacional, somente seis meses depois. A ONU, por quem estava ali, esquecera-o; a NATO havia-lhe lido a cartilha antecipadamente e todos sabíamos ao que íamos. No complaints.

Não chovia há quase uma semana e ao longe já se ouviam os cães das equipas de perseguição. O tempo era o adequado para o faro daqueles animais. Estava de regresso o meu mais recorrente pesadelo e agora vivido ao vivo…outra vez; O medo de ser capturado e “afogar-me num rio”, suplantava o da morte com um tiro.
A noite e a presença de tropas sérvias na zona só nos possibilitaram caminhar durante uma hora para sul, o que em montanha não é quase nada. Procurámos um ponto alto e tentámos dormir por turnos. Nunca consegui pregar olho…
Porque não vinha o heli buscar-nos antes do cerco estar completo e agora que os sérvios sabiam da nossa presença ali?

Continua…

quarta-feira, janeiro 10, 2007

A última curva...

Acordei sobressaltado com um estrondo que depois constatei ser proveniente do rebentar de um balão. As crianças, essas eternas fontes de riso e brincadeira arrancaram-me um sorriso adormecido. Lembrei os meus filhos…os gémeos tinham agora um ano e há seis meses e quatro dias que não os via. O mais velho lembrava-se de mim, dizia a mãe nos dois minutos que tinha por semana de telefone para ligar para casa. Encontrava-me no aeroporto de Milão – Malpenza, aguardando voo para Lisboa. Três dias antes, ainda em Sarajevo, havia recebido um convite para mais um tour de seis meses. Obviamente recusei, apesar de me garantirem que seria no Quartel-General da Missão e que não haveria patrulhas nem missões esquisitas. Para mim chegava.
Faltavam ainda quatro horas para o voo e decidi beber umas “bejecas” num daqueles bares de aeroporto. Afinal haviam passado seis meses e quase não gastei dinheiro nenhum…não havia onde fazê-lo.
Bebi durante mais de duas horas… Estava atascado de cerveja e de grapa… A velha anestesia do soldado era agora aplicada para ajudar a passar o tempo. Procurei assento junto à porta de embarque, faltava agora pouco mais do que uma hora.
Adormeci por breves momentos e só acordei com o “basqueiro” de uma grupo desportivo qualquer que embarcaria também para Portugal.

A bordo informei a hospedeira que não queria comer nada e que precisava de dormir. O tal grupo desportivo não deixou e pus-me a recordar…Era estranho, vinha-me embora mas sentia saudades dos que lá ficavam. Um turbilhão de sentimentos deu-me a certeza de que não voltaria mais…nem de férias. Pedi uma heineken à hospedeira.
Recordei a minha saída de Sarajevo e os meus últimos tempos adido a uma unidade militar inglesa. Conheci-os o suficiente nas mais de duas dezenas de patrulhas que fiz integrado na sua unidade. Aliás, estranhei que alguns deles, que logo ao início olham tudo o que não é british de soslaio, me saudavam militarmente e tratavam-me com deferência. Evans, esse meu grande amigo e irmão de armas, havia-se encarregado de os “brifar” sobre nós, os “velhos”.
Não sei o que lhes disse, só sei que me imitavam em tudo quando em patrulha, quer nas ruas de Sarajevo, quer nas montanhas em redor. Até os próprios sargentos ingleses e o oficial comandante de pelotão me tratavam de forma diferente do formalismo militar.

Um dia, numa dessas patrulhas nos arredores a norte de Sarajevo, encontrámos um pontão destruído mesmo antes de uma grande curva para a direita, ladeada de montanha de um lado e de uma várzea do outro. Ao fundo, a uns duzentos metros, uma casa de campo destruída indicava que aquela várzea havia sido terreno de cultura.
O tenente Higgins, comandante de pelotão, ordenou que um pequeno grupo avaliasse das condições da várzea para a passagem dos seis “Land-Rovers”. Cortam-se uns ramos de árvore, desbastam-se as ramadas e depois servem de espeto para aferir da macieza da terra para poder suportar ou não o peso dos carros.
Três soldados meteram-se à várzea, não antes de se estabelecer a segurança, tendo uma equipa passado a curva através da encosta da montanha, evitando assim alguma emboscada daquele lado.
A imagem lembrou-me as fotografias do meu pai da guerra em África, com os pica-minas sempre a picar o itinerário…Pequenos grupos de passarinhos pousavam aqui e ali à busca de alimento…De repente despertei naquela manhã calma e berrei para os “picas”:
- Stay where you are, stop!
O sargento Edwards veio ter comigo e perguntou-me se havia visto algo. Nem lhe respondi, corri até aos três rapazes e gritei para toda a gente ficar quieta. Passaram-se uns cinco minutos até que os pássaros, que haviam levantado com a algazarra e com o movimento do pessoal a tomar posições, regressaram em pequemos grupos a determinadas partes da várzea. Disse aos três rapazes para regressarem colocando os pés precisamente no local onde haviam pisado antes.
Expliquei ao tenente Higgins que acreditava que havia minas naquela várzea. Que na minha opinião o facto do pontão estar rebentado e não haver relatório da patrulha anterior sobre o facto, o que nos obrigava a passar através da várzea, aliado ao facto dos pássaros pousarem em sítios específicos, indicava que a terra havia sido mexida recentemente.
O ter sido criado no campo e o me ter lembrado das fotografias do meu pai, salvara a vida a alguns de nós. Aguardámos quase duas horas pela chegada do “heli” com os sapadores de engenharia. Naquela várzea foram encontradas e destruídas três minas anti-carro e oito anti-pessoal. O Pontão foi reparado.

Chegou o dia da partida e, inexplicavelmente, conduziram-me para outra parte do Aeródromo de Butmir. A hora de apanhar o avião militar para uma base italiana nos arredores de Milão aproximava-se e não percebia o motivo porque estava ali. Talvez me fossem dar uma recordação…
Uns minutos depois entrou o capitão William Hartmann e disse-me que estava na hora.
Cá fora o pelotão dos Royal Green Jackets em que estava integrado estava formado em uniforme de parada e prestou-me honras militares não protocolares. Não consegui articular uma palavra, postei-me na sua frente e recebi, eu um sargento, a continência de um tenente. Um militar não forma de óculos de sol mas naquele dia quebrei a regra. Olhei-os através das lentes para não me “desmanchar” na sua frente. Retribui a continência, virei-lhes as costas e quis sair dali para fora.
O major Barrows acompanho-me até ao avião, apertou-me a mão e disse-me qualquer coisa sobre as minhas capacidades militares…não o quis ouvir…de emoção já chegava.
Guardarei na memória aquelas imagens até que um dia me vá reunir aos outros que partiram antes. Guardo também o diploma/louvor que me deram e que não entreguei cá para o meu processo. Geraria invejas e ódios desnecessários e isso não era importante. Quem me conhece sabe o que é verdadeiramente importante para mim.

Soube depois que por cá um sargento fora condecorado por “bravura” por ter reagido a uma emboscada sérvia, quando na realidade, após o processo de averiguações, se concluiu que os tiros na sua viatura eram da sua própria arma e havia que justificar os disparos. Como o processo já ia adiantado e era tarde para desmanchar o logro, o homem lá foi condecorado pelo PR. Um outro, este oficial, que tinha o azar de adoecer na véspera das patrulhas que lhe competia fazer, para além de se esconder debaixo de uma mesa de snooker quando dos bombardeamentos e gritar que nem um desalmado, foi agraciado com a medalha de serviços distintos e colocado num posto no estrangeiro. Um outro ainda, também oficial, cuja fama de negociante na Bósnia lhe valeu vários comentários pouco abonatórios por parte de oficiais estrangeiros, tentou suicidar-se há pouco tempo com veneno. Pesar-lhe-á a consciência?
Quando regressei disseram-me, à laia de justificação nem sei do quê, e sem que eu tivesse perguntado alguma coisa, que só havia cota para condecorar um oficial e um sargento.
Foram condecorados um mentiroso e um cobarde…