sexta-feira, novembro 04, 2005

Conversa de Aldeia

Ainda mal tinha posto pé no estabelecimento do Ti Gervásio e da Ti Humildá, daqueles de duas entradas (num lado é mercearia, no outro é taberna e barbearia), quando aquele vozeirão que conhecia desde miúdo anunciou a minha chegada.
- Atão Maneli, por cá ôtra veis?
- Bom dia meus senhores, tudo rijo ou não prestam? - Provoquei, sabendo certa a constatação da 3ª Lei de Newton: Para cada acção há sempre uma reacção igual e oposta.
- A rijeza já me vai faltando onde é precisa e apracendo onde na a quero! - Respondeu de pronto o Ti Carolino, homem de excepcional carácter a quem sempre conheci bons modos e respeitáveis cabelos brancos.
- É, vim até cá matar as saudades! - Respondi, fazendo sinal ao Ti Gervásio para um “caco” para ele e outro para mim. Anuiu, era praxis antiga, desde que me tornara homem. Esperei um pouco para convidar os outros. Estava mesmo a pedi-las.
- Tava a vere que vinhas aqui fazere precuras de médico e depois na recetavas o xarope! – Agora era o Senhor Cabo da Guarda Trindade, como sempre o conhecera. Aposentado já há uns anos, era das pessoas mais queridas da aldeia. Havia sabido resistir sempre à tipicidade salazarista que a Guarda ostentou. Se há pessoa que mereça a adjectivação de altruísta é ele.
- Olha vai falare o presidente, o Jorge dos Paios! - Disse o Ti Manel Cara Dura. Um daqueles cromos que já não se fabricam.
- Atão Maneli, Lesboa tá no memo sítio? - Perguntou o Ti Carolino.
- Está na mesma, como sempre. O dia que puder viver aqui nem olho para trás. Podem crer! - Disse com a maior das convicções.
- Acho beim, tu és daqui na és de lá. Aqui é que tá quem gosta de ti e te respeta. Quem havia de dizere, parece que foi ontem c’andavas ali na chapada da Marinela com as ovelhas do tê avou, sem precisares disso e hoje és quem és! – Retorquiu.
- Se pensam que vos pago mais uma rodada por essa marmelada toda estão enganados! - Disse-lhes, sabendo que o faziam por carinho e respeito.
- Home essa! Na é mentira nenhuma que és difrente duns c‘andam por aí todos cagões...e na valem mais cum caganito d’ovelha!
- Parem lá com isso e deixem-me ouvir o Presidente! - Disse interrompendo agora o Ti Manel Cara Dura, para ver se punha fim àquilo.
Compreendia-os bem, o que lhes doía é que haviam acarinhado muita rapaziada da minha geração, fazendo seus os sucessos deles e agora, muitas vezes, nem os bons dias ouviam. Quantas vezes no apanhar da camioneta para a cidade, onde estudávamos, não vinham aquelas almas com mãos grossas e duras que nem tábuas, darem-nos vinte cinco tostões, ou mesmo cinco escudos, o que na altura era uma pequena fortuna, sempre com a recomendação para que comêssemos bolos de creme que na aldeia não havia. Queriam que as novas gerações não passassem pelo que eles haviam passado.
Que lições de humildade, generosidade, humanidade, de valores e princípios eu recebi desses homens que em comum comigo têm tudo...tudo.
Que saudade dessa gente e do meu Alentejo. O meu sentido de pátria nasceu lá, entre chaparros e azinheiras, entre gente simples mas recta, honesta e leal.
- Ti Gervásio ponha lá aí mais uma rodada e algo para roer, talvez assim me deixem ouvir o homem! - Disse em tom de brincadeira, olhando na direcção da televisão.
Falava o cidadão Jorge Sampaio, titular do cargo de Presidente da República, dizendo que a classe política portuguesa estava vazia de ideias e a sociedade portuguesa parca em figuras notáveis, comentando a contestação da nomeação de uma sumidade qualquer para o Tribunal de Contas. Nem é magistrado, é mestre em direito e filiado no PS. Nada de novo.
Então, para surpresa minha, não é que o ouço plagiar, embora timidamente ou numa imitação rasca, o celebre discurso à nação de JFK?
Das duas uma ou ambas; ou quem lhe escreve os discursos nos tem em pouca conta ou então deveria estar a escrever “dizursos” e ter mais cuidado, uma vez que apesar das bostadas sucessivas feitas pelos sucessivos ministros da deseducação, ainda há por cá rapaziada que se interessa um pouquinho por história do século XX. Curiosa esta gente heim!
Grave mesmo e não quero acreditar que assim haja sucedido, é ter sido o próprio cidadão Jorge a escrevê-lo. Não! Seria demais, o homem tem um assessor para isso, mas para que conste a frase original é mais ou menos assim:
“(…) my fellow Americans, don’t ask what your country can do for you, ask what you can do for your country (…)”.
Quando o ouvi proferir a frase, na versão lusa, quase que…eu sei lá, quase que lhe chamei demagogo. Ó senhor Jorge, olhe que é de boa educação referir-mos sempre os autores. Eu ouvi e não queria crer, qualquer dia teremos outro cidadão qualquer a gritar do alto do Parque Eduardo VII:
- “Free at last, free at last. Thanks God all mighty, we’re free at last!”
Então não bastava já aquela senhora Pinto qualquer coisa ter plagiado artigos duma revista americana de grande prestígio, fazendo crer à plebe ser ela a autora, vinha agora este cidadão com mais esta.
- Maneli, o qué co home disse que até deste uma punhada no balcão? - Perguntou o senhor Trindade.
Expliquei então o que o homem havia dito dos cérebros e dos notáveis portugueses, assim como aquela frase, que os presentes haviam achado de um sentido profundo. Aproveitei, então, para denunciar onde é que esses trastes colocam os filhos deles e os dos amigos, comentando um artigo saído, surpreendentemente, na imprensa diária.
- Ah! Já percebi! – Disse o Ti Carolino, finalmente – escondeu o filho na tal PêTei. Na é lá que tão todos os filhos dos políticos do país a aprenderem a governar as coisas do Estado, até o filho do Otelo?
É verdade ou quase, aqueles prodígios do nosso sistema de educação, todos concentrados no mesmo edifício, comovem qualquer português. Como o cidadão Jorge se referiu à pouca proliferação de mentes brilhantes no nosso país, até dei razão ao Ti Carolino. Urgia criar e manter uma reserva estratégica de excelsa massa cinzenta.
- Ná, o ome tá mas é a escondê-los todos dos amaricanos...hã?, Na, na é amaricados, esses tão no governo! - Disse o Ti Gervásio.
- Não? atão é dos ingleses. Na faltava más nada, levaram-nos o vinho do Porto, as lãs, os trenadores e os jogadores, agora tamem levavam os cabeças, não? – Disse o Ti Manel Cara Dura.
As nossas mentes brilhantes, as que se vão embora, fazem-no porque cá são obliteradas por mestres caducos e assistentes apadrinhados. As que ficam, algumas, vão para o sector privado e outras perdem-se por aí, muitas vezes subalternas de gestores públicos pouco qualificados, como parece que acontece ali para as bandas da CGD.
Durante trinta anos a classe a que o cidadão Jorge pertence geriu os destinos do país como quis e lhe apeteceu, auto regulamentou as suas reformas, quando o “tacho” 1 estava a acabar auto nomeavam-se para o “tacho” 2, aumentaram escandalosamente os quadros da Função Pública com os apadrinhados políticos, fizeram recair sobre os professores a culpa do estado da educação, sobre os polícias a culpa sobre o estado do crime e mais haveria para dizer.
Há funcionárias em ministérios, nomeadas Ad Hoc pela mesma classe a que o cidadão pertence, que fariam corar de pudor a Mónica Lowinsky. Algumas até guardam as joelheiras na gaveta da secretária, que é, diz-se, para quando vão a Fátima não magoarem os joelhos no pagar da promessa por um bom emprego. Sabe-se que a sua subida vertiginosa na carreira o foi de forma absolutamente horizontal.
E o senhor, cidadão Jorge, como mais alto magistrado da nação, decide dizer aos portugueses que eles é que têm de fazer alguma coisa pelo país e não o país por eles, como se tivéssemos andado estes anos todos na boa-vai-ela e vós, os políticos, a sacrificarem-se por nós?
Tenha vergonha, reveja o que disse e não ofenda a inteligência dos outros.
Sabe, cidadão Jorge, muita gente neste país não ocupa lugares de destaque por não lhe reconhecerem o mérito e também, diga-se em abono da verdade, por não terem QI suficiente.
Não, não é ao Quociente de Inteligência que me referia, porque esse, nessas pessoas, tem três dígitos e o da esquerda não é zero. Eles não têm é Quem os Indique! QI, está a ver?
- Para onde cidadão Jorge?
- Para o cargo claro, para onde havia de ser? Então querem lá ver que trinta anos constantemente a fazer fezes é trabalho de pessoas com três dígitos e o da esquerda não é zero?
Ah, já sei! Também foram empregados da PT!

15 Comments:

Blogger José Gomes da Silva said...

Este é dos tais "posts" que merecia ter sido dividido em duas partes.
Uma primeira parte, literariamente brilhante, que nos fez ouvir os timbres de voz, sentir o ambiente envolvente com uma vontade de ficar ali, com vontade que o diálogo nunca acabasse. Essa característica, que nos faz agarrar com toda a força cada bocadinho de texto, cada bocadinho de frase, com medo que ela acabe, com medo de ouvir a campainha avisadora de que o carrocel vai parar, mais uma viagem, mais uma corrida, essa característica chama-se talento.
Eu hoje estive mesmo no Alentejo a beber um caco também, podes crer!

Na segunda parte, quando deste "uma punhada no balcão", acendeste a curiosidade dos teus conterrâneos mas apagaste a música de um dos sotaques mais lindos que conheço, e que me estava a transportar por momentos para longe deste esterco.
Acordei, subitamente. Terás batido com força de mais?
"Caí na real", não é assim que dizem os nossos irmãos de além-mar? Chico cantava: "Eu queria estar na festa, pá, com a tua gente"...Coitado, mal sabia ele o que estava para vir...

Para a próxima, Manel, separa as duas coisas para a queda não ser de tão alto.

Obrigado pela partilha da excelência.

Um Abraço

04 novembro, 2005 17:31  
Blogger Menina Marota said...

Depois de ler o comentário do Zé, que mais posso dizer, que ele já não tenha dito?
Excelente o teu texto. É sempre um prazer enorme ler-te.

Um abraço e bom fim de semana :)

04 novembro, 2005 22:36  
Blogger Zica Cabral said...

Ai Maneli , transportaste-me para o Alto e Baixo Alentejo. POrque adoro os dois.
Na primeira parte do post adorei a forma como homenageias a gente da tua terra, com a humildade proprias dos grandes, que sabem o que devem aos mais velhos, aos que nos pprecederam. E aos conterrêneos que muitas vezes - como tu bem dizes - são ignorados porque os catraios que fazem o 12º ano acham que são e sabem mais dos que os "velhotes" . E se vão para uma cidade grande ainda é pior......
da Segunda parte quero salientar o imporrtantissimo Q.I - o que tu indicas, o QUEM OS INDIQUE. Esse é vital para as carriras dos senhores do poder, presentes, passados e futuros (pelos visto)
Quanto ao Q.I (QUOCIENTE DE INTELIGENCIA) e ao Q.E (QUOCIENTE EMOCIONAL) isso não é importante........o que faz falta ao país não são gennios.........são desenrascas..........toda a gente sabe
beijinhos Manel, mais uma vez quero confirmar que escreves bem, muito bem, que é facil lêr-te e ficar a pensar nas coisas que dizes..........
Beijinhos grandes e amigos
Zica

05 novembro, 2005 00:28  
Blogger Cristina said...

Olá Manuel,
um texto muito lindo, tens um dom de escrever muito imaginativo
:)
beijinhuu

06 novembro, 2005 17:10  
Blogger Zica Cabral said...

obrigado pelos versos Manel gostei imenso. Pena não mandares tb a musica........ah ah ah
Conheço Portel, se não me engano fica o pé da Vidigueira e tem um castelo lindissimo. Mas não conhecia estes cantares. Tive um grupo de musica popular aqui há muntos anos e cantavamos sobretudo coisas do Alto Alentejo porque dois dos membros (marido e mulher) eram da Terrugem. E os cantares da Terrugem eram lindissimos.
Infelizmente , por falta de tempo esse grupo acabou mas nós divertiamo-nos imenso. Aliás eram mais giros os ensaios do que depois os concertos propriamente ditos.
Beijinhos grandes da tua amiga
Zica

07 novembro, 2005 19:45  
Blogger Micas said...

Pois...depois de ler o comentário do Zé já não tenho mais nada a dizer, mentira, tenho sim senhor!Qualquer dia vou roubar (não plagiar) um destes textos geniais ;)

Beijinho e continuação de boa semana

08 novembro, 2005 09:30  
Blogger Conceição Paulino said...

lamentável e triste é o k a maioria de nós sente em relação ao estado da...nação e , principalmete, dos políticos k nos (des)governam. Sobre a quaildade do k aqui é dito..bom, é Q.I do bom, do verdadeiro, de quem pensa. Pefiro agora lamber os dedos, gulosa, ao reviver do convívio com anossa gente tão sã e vertical.Obrigada por este post. bj

08 novembro, 2005 14:59  
Blogger Henrique Santos said...

Manel, como é bonito o teu montado, homi... Adorei "ouvir-te"...
Olha lá este livro está à venda aonde? Quero ler o resto... ahahahah
Um abraço forte e... obrigada!
Ricky

08 novembro, 2005 15:02  
Blogger Unknown said...

Muito linda mesmo a forma que vc escreve. O Furão já disse tudo o que ia na minha cabeça. Faço das dele, minhas palavras. E já disse pra Zica e agora falarei pra vc, preciso conhecer o Alentejo e quando for, terá que ser com vc de guia.
Beijoks

09 novembro, 2005 01:28  
Blogger Isabel Filipe said...

um Post soberbo Manuel. Parabéns...

adoro o Alentejo... e as suas gentes....

qtº ao resto... ao cidadão JS...enfim...já disseste tudo... e nada tenho a acrescentar...

beijinho

09 novembro, 2005 11:28  
Blogger O Transmontano said...

Um dia, alguém disse: - Nada se inventa, nada se cria, tudo se copia... Pois é velho, o texto é cultura, cultura são ensinamentos e, ensinamentos desta qualidade e Q.I., mas do bom, são efectivamente para copiar. Quanto ao Furão Indiscreto, um muito obrigado por dizer por todos nós, aquilo que não somos capazes dizer.
Na escrita também há coragem além da infinita nobreza de sentimentos e da postura.
Espantado com isso eu? Nã, atão quem nã tem medo dum toiro vai lá ter medo de um cabresto?
Quem não tem medo de meia tonelada de bife, vai lá agora ter medo de um jorginho qualquer!!!!
Gande Maneli. Se não fosse por indelicadeza e sei que não tenho esse direito que estou em tua casa, dezia cá uma asnerada à cavalero c'até o cavalo dava um pinote.
Grande abraço amigo.

09 novembro, 2005 19:56  
Blogger Henrique Santos said...

Manel,
Volto cá outra vez, compara lá essa casa do teu montado, com a palhota que eu lá tenho, homem de Deus...
Um abraço, pois então, com um Kanimambo molungo, Ricky

11 novembro, 2005 10:47  
Blogger vero said...

Venho agradecer as lindas palavras que deixou lá no meu blog...devo confessar que até fiquei emocionada... É sempre bem-vindo!
Beijinhos e volte sempre***

11 novembro, 2005 19:25  
Blogger Menina Marota said...

Depois de uns dias "fora de circulação" vim deixar um abraço e (re)ler o teu texto... sorrio tristemente...

Um beijo de boa noite (já é madrugada...) e bom domingo ;)

13 novembro, 2005 04:01  
Blogger Nina said...

Desculpa a minha ausencia por estas bandas...mas estou a passar um momento menos bom e nem visitar os blogs q gosto me tem apetecido :(

Beijinho e OBRG pelo teu carinho :)

13 novembro, 2005 11:54  

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