Em busca de Deus e do homem

É precisamente este que falta à maioria dos políticos ou das classes dirigentes e quando o têm, porque oriundos de famílias mais modestas, muitas vezes é o deslumbre dos títulos académicos ou os cargos obtidos que deita a perder todos os anos vividos com os amigos de infância e ou juventude.
Um dia, estava eu de férias na minha terra natal e, nas ruas da cidade, encontrei um velho companheiro de infância e juventude que me convidou a passar lá por casa. Dois dias depois, saindo de casa com o meu pai para ir ao café, decidi tocar à campainha da vivenda do dito para o convidar também para um café. Atendeu-me a mãe, a qual reconheci de imediato, mas o inverso não sucedeu, talvez por distracção. Perguntei-lhe pelo filho tratando-o pelo nome por que sempre o tratei, até porque faço distinção entre o uso de nomes e títulos em lazer e em trabalho.
A resposta veio pronta e até um pouco seca, talvez a adivinhar que eu fosse fazer algum pedido ao filho, logo eu, que sempre dei aplicação ao ditado que cedo o meu querido pai me ensinou: “Nunca sirvas quem serviu e nunca peças a quem pediu.”
- O Senhor Doutor não está e hoje não vai ao escritório! – Anunciou.
- Muito obrigada minha senhora, informe-o por obséquio, que a um amigo lhe foi impossível aceitar o convite recebido e que também ele hoje não está no escritório. - Retorqui.
- E quem é esse senhor…é doutor advogado como ele? – Perguntou de novo.
- Não minha senhora, é amigo dele de infância e juventude, mas acho que se enganou na porta. Obrigada na mesma. - Rematei já com uma certa náusea.
Cerca de cinco minutos antes de sair de casa dos meus pais havia-o visto chegar à sua, no seu sumptuoso sinal exterior de sucesso com quatro rodas, mas agora não estava…coincidências.

É desta última que guardo uma memória grata pois teve um significado especial. A Bósnia havia-me tirado a vontade de passeios em montanha, já não as olhava com o romantismo e o espírito de aventura de outrora. Depois daquela noite tudo voltou ao normal.
Um dia, na varanda do bar do edifício de aulas da Escola da Nato em Oberammergau - Alemanha, um amigo dinamarquês, Kysbye, major pára-quedista, perguntou-me se queria subir à montanha no sábado seguinte, respondi-lhe afirmativamente mas disse-lhe que não ia pelo trilho normal, iria atacar o cume por outro lado, partindo na sexta-feira, depois das aulas, dormindo essa noite em altitude. Gracejou qualquer coisa sobre a dificuldade que eu sentiria e depois informou-me que no topo, no corpo da cruz, existia uma caixa metálica que guardava um livro de visitas onde era uso as pessoas assinalarem a sua passagem. Disse-me ainda que esperaria lá ver a minha assinatura.
São estes desafios que me levam a entrar como que num transe, da mesma forma concentrada com que pisava as arenas, buscando uma adrenalina diferente, o fazer parte da natureza, sentir-me nela e dela. Eu, os meus pensamentos e Deus.
Naquela varanda recordei a subida ao monte Krizevac, sobranceiro a Mostar, uma subida ao ponto mais alto dos Tatra, na República Eslovaca, e as patrulhas em Raska Gora, especialmente a última, de que um dia, com mais serenidade, darei luz.
Estava decidido, teria de dormir uma noite na montanha, sem medos, em paz e em comunhão com a natureza. Arrumei a mochila com o essencial para estas coisas e na sexta-feira depois das aulas pus pés ao caminho.
Após iniciar a subida e já quase a anoitecer procurei lugar para dormir junto a um regato com marcas de pequenas patitas de animais de sangue quente, sinal evidente da pureza da água e da ausência de animais maiores. Atei a “maca” (cama de rede) a duas árvores, a cerca de dois metros do chão, e procurei ervas naquela altitude fazendo com elas uma pasta que misturei com terra, urina e água, esfregando em seguida as minhas roupas e todo o material ”não natural” com a mistela. Para além de desodorizante natural, marca território e confunde o odor humano com os odores naturais da ambiência, tem é de ser feito depois de todas as roupas estarem arejadas do suor, secas ou mais ou menos secas, meias incluídas.
De manhã, ao primeiro chilrear das aves, acordei depois de uma noite bem dormida e serena, mas cujo início havia sido de recordação e resignação. Tomei um banho improvisado na água gelada do regato, passando também as roupas objecto da mistela pela água, torcendo-as e colocando-as em seguida penduradas na mochila para secarem durante a marcha. Comi uma barra energética e ataquei o resto da subida pela vertente mais difícil.
Quando cheguei ao Kobel, cujos últimos 30 metros são em escalada através de uns grampos cravados na rocha, encontrei um turista austríaco que me tirou as fotografias comemorativas. No livro de visitas deixei escrito o que de momento me veio à cabeça; um pequeno verso de uma canção alentejana de Portel, uma frase em inglês dum álbum de Vangelis, os meus nicks, país e data:
Dei um ai entre dois montes
Responderam-me as montanhas
Ai, ai que eu já não posso
Sofrer ausências tamanhas
Going on means going far,
Bambino (Ramon) - Portugal, 7-7-2001
Estava cumprido o ritual de peregrinação e a exorcização de mais um fantasma. Nessa noite comi um bife na pedra, pago pelo meu amigo Kysbye e ofereci-lhe um edelweiss 2 que colhera. Nesta quadra voltei a recordar tudo isto, perguntando-me que importância terá esta narrativa para outros. Terá a que lhe quiserem dar, para mim foi o viver de momentos únicos, meus, de superação, paz e conforto espiritual.
Para vós:
Que os melhores momentos de 2005 sejam os piores de 2006.
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1 - A frase encontra-se na parede do refeitório do aquartelamento de Penude - Lamego, onde está sedeado o Centro de Instrução de Operações Especiais.
2 - O Edelweiss é uma pequena flor típica dos Pirinéus e dos Alpes que só se encontra acima dos mil metros de altitude. É também o símbolo das tropas de montanha alemãs.