Sarajevo - Os Dias da Guerra

Com os EUA empenhados militarmente no médio oriente, valendo-se dum desmoronar do império soviético e consequente incapacidade para intervir militarmente num país que havia sido sempre não-alinhado, aliás, o líder dos não-alinhados, ficou para segundo plano, na agenda da política externa dos EUA, a resolução do problema no fulcro da Europa.
A CEE, ainda denominada assim na altura, fica a braços com um problema para o qual não tem capacidade de dar resposta militar, uma vez que é Nato-dependente.
Entretanto, nos meandros políticos da velha Europa, onde a têmpera guerreira britânica contendia com um neo-germanismo ao estilo green-peace e com a arrogância francesa, criavam-se, com a apatia política, as condições para o renascer da selvajaria que apenas meio século antes havia lavrado pelo mundo e em especial na Europa.
Como nota pessoal, continuo sem perceber de onde vem a arrogância militar francesa, pois um país que tem como melhor força militar uma tropa estrangeira e teve como melhor chefe militar um Corso (que para os franceses é gente de segunda), sinceramente não alcanço de onde lhes virá o garbo.
Neste quadro, os líderes de origem sérvia da Bósnia, da Croácia e da própria Sérvia, assim como os seus congéneres bósnios e croatas nascidos noutros locais que não a sua origem étnica, viram ali a oportunidade de, finalmente, criarem os seus estados próprios e acabarem de uma vez por todas com a mistura étnica nas nações emergentes.
É neste contexto que é enviado para o terreno o primeiro grupo de observadores/monitores da CEE, que teriam por missão a protecção das populações, através da sua presença desarmada, assim como o relatar dos crimes de guerra perpetrados por quaisquer dos contendores.
Por outro lado, a NATO, com o consentimento da ONU, envia para o terreno equipas de observadores militares, aos quais cabia a missão oficial de observar o desenrolar das operações militares e uma outra, de natureza não pública, a qual consistia em referenciar militarmente todos os objectivos militares de todos os lados da barricada. Esta segunda missão poderia implicar o desaparecimento físico dos homens envolvidos, o que a suceder seria imediatamente assumido pelo governo do militar em questão pela afirmação de que o mesmo estaria a actuar por sua conta e risco, logo fora do âmbito das ordens recebidas. Assim sucedeu com militares norte-americanos, em Junho de 1994, a sul de Sarajevo.
No âmbito da primeira missão foi enviado para o terreno, a par de outros, o homem que vos quero dar a conhecer com esta história. Hoje vive, como sempre quis, junto ao mar, ali para os lados da Ericeira, de consciência tranquila e anónimo. Feliz? Julgo que sim.
Conheci-o nos meados da década de oitenta, há quase vinte anos, era então um homem ainda jovem e fazia-se acompanhar sempre, dentro do quartel, de um cão enorme de cor preta. De baixa estatura, a dar para o anafado, sempre sorridente e de verbo fácil, era o estereótipo do anti-herói. Era portador de um conhecimento da sua profissão e de uma cultura geral elevadíssimas, talvez por isso não tenha alcançado lugares mais cimeiros.
Encontrámo-nos um dia em Sarajevo, onde o comando da sua missão estava instalado num hotel que já havia sido objecto de mimos por parte da artilharia sérvia, colocada nos montes Trebevic a sul da cidade. Trocámos algumas impressões e lá fomos a uma reunião conjunta. Era para isso que eu ali estava.
Dias depois, já com a equipa que eu integrava bem internada em território onde os militares de um dos lados faziam questão de afirmar que não garantiam a nossa segurança, aguardávamos contacto rádio a confirmar encontro com uma patrulha onde vinha o Cod (nome que lhe dou agora).
De dia fazia um calor danado naquele mês de Junho, acompanhado em altitude por aguaceiros de grande intensidade e por um frio de rachar à noite. Acachapados no alto de uma elevação sobranceira a um cruzamento de estradas, nos montes Semerska, a norte de Sarajevo enquanto a XVI Divisão do I Corpo de Exército Bósnio atacava o exército sérvio vinda de norte, aguardávamos o contacto com a dita patrulha que nos iria retirar da zona, uma vez que os helicópteros que nos deveriam exfiltrar (evacuar), foram “aconselhados” a não sobrevoar a zona porque poderiam ser alvo de fogo hostil.
Tempos depois “cairia” um helicóptero holandês que não respeitou os “avisos”.
Já quase de noite, com o rumor da batalha bastante perto e o ruído incessante das colunas militares sérvias em retirada para sul, lá surgem os Jeeps pintados de branco, logo parados por um grupo de cerca de trinta Chetniks sérvios, colocados a cerca de cem metros do cruzamento, junto ao rio Bosna.
Descemos do local onde estávamos com as precauções que a situação impunha, cientes de que a qualquer momento tudo ou nada poderia suceder.
De repente, da outra estrada, surge um grupo de homens armados que imediatamente identifiquei. Eram elementos do exército da Federação Bósnio-Croata (Adiante FBC), que se preparavam para cortar a retirada aos sérvios ao longo da estrada Ilijas-Semizovac, a qual é paralela a uma importante rede ferroviária.
Estava o “caldo entornado”, assim que se reconhecessem mutuamente recomeçaria a carnificina. O Evans, sargento inglês do 2nd Para-Regiment, fez-me sinal e postou-se junto a uma rocha, cerca de trinta metros acima do cruzamento, com o “corta-relva” em posição. Nós fizemos o mesmo, uma vez que só os dos “Jeeps” sabiam que ali estávamos.
O Cod, apercebendo-se da aproximação dos antagonistas e de que nos teria de tirar dali, sai da viatura com aquele ar bonacheirão e no seu melhor inglês diz ao comandante Chetnik:
- Estávamos à vossa espera para nos garantirem a segurança e a passagem pela estrada para Sarajevo! – Não lhes podia dar a entender que estavam cercados e que a sua presença ali seria presa fácil dos homens da FBC.
Deixou um major espanhol a falar com os Chetniks e foi postar-se no meio da outra estrada, mandando acender as luzes dos veículos. A noite estava agora escura como breu e a brisa que soprava trazia o odor da guerra com ela.
A silhueta dos militares da FBC era agora mais nítida enquanto se aproximavam estrada abaixo, paralelos à nossa posição. Eram cerca de cinquenta, um grupo de combate. Quando os faróis se acenderam refugiaram-se na floresta, excepto dois que pareciam ser o comandante e um tradutor.
O Cod dirigiu-se a eles e disse-lhes que estava ali para garantir que a patrulha regressaria em segurança a Sarajevo, uma vez que já havia obtido o acordo dos sérvios que se encontravam “em grande número junto à margem do Bosna”, uns duzentos metros acima.
Ao mesmo tempo grita em português (sabia que eu ali estava), e estas palavras recordo-as bem:
- Manel da Vidiguera tira esses mecos daí que é para parecer que somos todos da mesma patrulha!
Comuniquei o dito ao meu líder e ele sorriu. Descemos a encosta e juntámo-nos ao Cod, tendo ele avisado para não haver cumprimentos efusivos não fosse que os outros suspeitassem de algo.
Chegados à estrada e obtido o acordo dos comandantes de ambas as forças para a nossa passagem para sul, o Cod convida-os então e aos seus adjuntos para selar o acordo com algo.
Ali naquele cruzamento a norte de Sarajevo, em vésperas de Santo António, com batalhas a decorrer em nosso redor, sob um “capot” de um Jeep e em copos de plástico, os comandantes das duas facções cumprimentaram-se e brindaram ao fim rápido da guerra e ao bem estar das suas famílias. Tudo sob os auspícios do Cod. Eu estive lá.
Dias mais tarde as rádios sérvias e bósnio-croatas, relatavam o episódio do “Diplomata do Vinho do Porto”, assim o soubemos pelas escutas e transcrições que a NATO fazia das rádios e comunicações dos beligerantes. Ainda hoje recordo com saudade a admiração que causou junto de outros militares estrangeiros, elevando bem alto o nome de Portugal.
Sei que não o condecoraram por este feito e por outros, pois a partir daí era chamado com frequência a resolver este tipo de “equinócios”. Ele também não o queria, mas houve alguém que colheu frutos disso, o Cod não.
Um dia, já após a sua saída das Forças Armadas, havia acabado de lhe entregar uma pequena lembrança de um grupo de amigos, dispersos por diversas Forças Armadas da NATO e que com ele haviam servido a paz nos Balcãs. Indiquei-lhe a placa gravada que acompanhava a lembrança. Leu-a, nada disse, olhou-me de frente com os olhos molhados e em seguida abraçou-me.
A placa contém um dizer do Padre António Vieira:
“Se serviste a Pátria e ela te foi ingrata, tu fizeste o que devias, ela o que costuma”.