E Deus virou costas...

Um rapazinho subia a colina com um carrinho cheio de pertences ou despojos. Pau!...Um estampido seco anunciou o tombar do seu corpito como um boneco de trapos. De onde estávamos ouvíamos as palmas e as gargalhadas dos assassinos e tivemos de nos acalmar mutuamente para não saltar em frente a abatermos aqueles…comprometeríamos a missão e eu já estava farto de perseguições.
Stefan chorava lembrando-se da mulher e dois filhos assassinados pelos sérvios dois anos antes. Haviam cometido o “crime” de serem croatas nascidos em terra reclamada pelos sérvios.
O êxodo de Gorazde e aldeias limítrofes começara agora que os sérvios voltavam após terem sido bombardeados pela NATO, facto que deu uma certa esperança àqueles que não fugiriam da primeira vez.
Após a revelação das fotografias por satélite alguém lá muito atrás na cadeira do poder deu finalmente razão àqueles que colhem a informação no terreno em primeira-mão. O que eram povoações intactas em Março de 1994, um mês depois estavam destruídas, saqueadas ou ocupadas por sérvios. Os homens entre os 15 e os 70 anos que não fugiram, foram executados. As suas mulheres filhas, irmãs, cunhadas ou amigas, haviam sido violadas e violentadas vezes sem conta. Às grávidas foram-lhe arrancados os filhos do ventres como se estripa um animal e para ali as deixaram a esvair-se em sangue. Algumas abanavam os fetos como que tentando que vivessem. Ainda as ouço como se estivessem aqui ao meu lado.
- O diabo está a ganhar a corrida às almas! – Disse outra vez Evans, ao mesmo tempo que tentava acalmar Stefan.
Estávamos outra vez naquelas missões de recolha de informação. Haviam passado apenas dez dias que saíramos daquelas montanhas e agora regressávamos p

Adquirira a capacidade de identificar todo o tipo de equipamento, armamento e distintivos dos exércitos dos países de leste e portanto era necessário ali. Estas sub-equipas de três homens, pertencentes a equipas de nove, foram, pela sua especificidade, a génese das equipas de inspecção do tratado de controlo de armamento na Europa (CFE Treaty).
Éramos infiltrados em território hostil para, resumidamente, localizar, identificar, contar e informar da quantidade de armamento, equipamento e homens das forças inimigas. Um tinha a responsabilidade de contar, outro de identificar o tipo e o terceiro anotava e enviava o relatório para a retaguarda. Ali estávamos há dois dias e as colunas sérvias com diverso tipo de material não paravam de circular para oeste, bem para as nossas costas. Preparava-se algo em grande.
Se algo nos acontecesse a ONU lavaria as suas mãos e a NATO afirmaria que nos perdêramos. Ainda hoje ninguém explicou o que aconteceu a um canadiano, um belga e um norte-americano. Afogaram-se num rio, disseram às famílias…
Lembrando-me da última vez que ali havia estado e da fuga pelo rio Drina abaixo, levava calçadas as botas que trouxera de Portugal; modelo dos Fuzileiros. São mais fáceis de calçar e descalçar e como não tem cordões não se prendem nos silvados, em raízes ou em ramos rasteiros que ao soltarem-se fazem barulho e podem denunciar a nossa posição.
Stefan estava inconsolável e quebrando todas as regras havíamos levado Rakia, uma aguardente local, a qual lhe demos para o acalmar. Murmurava qualquer coisa incessantemente e finalmente adormeceu. A noite aproximava-se e sabíamos por experiência que de noite os lobos caçam melhor. Iria ser mais uma a ouvir gritos, tiros e o crepitar das chamas dos incêndios das casas.
Ao amanhecer recebemos via rádio a informação que o sub-team de Carlo, Mike “The razor” Wilkinson e Esteban, havia caído nas mãos do exército regular sérvio. Recebemos ordem para exfiltrar em direcção ao sul. A missão da ONU em Gorazde iria tentar negociar a libertação dos nossos camaradas. Soubemos mais tarde que Carlo havia sido evacuado para um hospital sérvio porque tinha fracturas múltiplas numa perna provenientes da queda de um penhasco, facto que havia denunciado a posição daquele sub-grupo, apenas a escassos mil metros da nossa posição. Regressou a Itália, após negociações entre Belgrado e a Cruz Vermelha Internacional, somente seis meses depois. A ONU, por quem estava ali, esquecera-o; a NATO havia-lhe lido a cartilha antecipadamente e todos sabíamos ao que íamos. No complaints.
Não chovia há quase uma semana e ao longe já se ouviam os cães das equipas de perseguição. O tempo era o adequado para o faro daqueles animais. Estava de regresso o meu mais recorrente pesadelo e agora vivido ao vivo…outra vez; O medo de ser capturado e “afogar-me num rio”, suplantava o da morte com um tiro.
A noite e a presença de tropas sérvias na zona só nos possibilitaram caminhar durante uma hora para sul, o que em montanha não é quase nada. Procurámos um ponto alto e tentámos dormir por turnos. Nunca consegui pregar olho…
Porque não vinha o heli buscar-nos antes do cerco estar completo e agora que os sérvios sabiam da nossa presença ali?
Continua…