Farrapos de vida...
Pam! – O som da pancada dada com a mão na mesinha de cabeceira anunciava mais um acordar vindo não sei de onde. Suava abundantemente e acordei sem força nos braços. Lancei num só movimento as pernas para fora da cama e o frio da tijoleira trouxe-me de volta ao presente. Tinha a boca seca e a respiração ofegante.
Sem querer lá voltam os “filmes” do passado. Recordei, agora acordado, os meus camaradas, alguns dos quais só conheci jovens e é assim que os recordo, nunca envelhecem. É assim que se lembram os mortos, como eram.
Como um autómato procuro “o álbum” de fotos fechado a sete chaves que mais ninguém viu. Lágrimas teimosas inundam-me os olhos, embora as tente conter num esforço vão de orgulho másculo. Pego no “portátil” e descarrego o que me pesa há doze anos.
As lágrimas de impotência que verto são o desespero e a raiva calada e surda, desejando que o caos nunca regresse. Não é pieguice, é meramente humano, é de quem já esteve na toca do lobo mau e saiu de lá, como? Eu sei lá!
Molhei o teclado! Merda….Desculpem a grosseria…saiu!
Sem querer lá voltam os “filmes” do passado. Recordei, agora acordado, os meus camaradas, alguns dos quais só conheci jovens e é assim que os recordo, nunca envelhecem. É assim que se lembram os mortos, como eram.
Como um autómato procuro “o álbum” de fotos fechado a sete chaves que mais ninguém viu. Lágrimas teimosas inundam-me os olhos, embora as tente conter num esforço vão de orgulho másculo. Pego no “portátil” e descarrego o que me pesa há doze anos.
As lágrimas de impotência que verto são o desespero e a raiva calada e surda, desejando que o caos nunca regresse. Não é pieguice, é meramente humano, é de quem já esteve na toca do lobo mau e saiu de lá, como? Eu sei lá!
Molhei o teclado! Merda….Desculpem a grosseria…saiu!

Recordo a conversa ouvida numa esplanada na tarde anterior, cuscamente, confesso. Alguém falava nos bombeiros chilenos e no português mortos num incêndio a semana passada e as velhas receitas para o fim da criminalidade incendiária surgem como se estivéssemos a falar do degolar do frango para a cabidela.
Nunca conheceram o caos nem nele sabem sobreviver e ainda assim desejam-no?
Matar um animal de sangue quente não é o mesmo que matar uma barata e matar uma galinha ou um porco não é o mesmo que derrubar um ser humano…não desejem nunca o que não conhecem!
Os pensamentos são como as cerejas, não só as conversas. São 05H14 da madrugada. Faço café e acendo a TV. A CNN passa imagens das ruas de Beirute. Destroços, só destroços…e o cheiro? Ah! A televisão não “dá” o cheiro.
Mais um camarada se junta na madrugada e recordei-lhe a morte na Alameda dos Atiradores. Era cabo da engenharia francesa ao serviço da ONU. Morreu enquanto operava um bulldozer, removendo destroços.

Tauuuuuuu! - Aquele estampido seco com eco era-me familiar, seguiu-o o barulho do vidro a partir-se e o som surdo do corpo a cair no solo. Até o ouvi afogar-se no próprio sangue, de tão perto que estava. Reagimos de imediato e localizámos o atirador e o marcador, iniciando a caçada. Ouvimos “Gaza” gritar no rádio; “Capture or eliminate”. Por mim estava decidido, escolhi a primeira opção.
Entre as ruínas duma fabriqueta de curtumes havia uma passagem para as montanhas a sul e foi para lá que corremos, eu, Evans, Voborny e Peter. Eles não sabiam que sabíamos. Nas traseiras havia um pequeno descampado, então cemitério de ocasião das vítimas dos snipers. Instalámo-nos e aguardámos. Do meu spot, nas ruínas de um prédio próximo e enquanto os outros batiam os prédios em redor, olhava para um insecto que nunca vira. Meio escaravelho, meio aranha, carregando “cagadelas” de morcego para o ninho…que raio de “aranhiço” era aquele?
Olhei para o relógio e já tinham passado 40 minutos. Doía-me agora o corpo da imobilidade forçada. Mexi os dedos dos pés e contraí todos os músculos para afastar a “dormência”.
Uma brisa matinal de norte trazia-nos os odores do rio Miljascka e duma cidade cercada e sem esgotos. Nem o Vicki Vaporub ou pomada de bálsamo metidas nas narinas evitavam a inalação do cheiro a caos. Que fedor!
Uma pedrinha atinge-me o capacete e olho na direcção de Evans. Apontou-me umas ruínas de um prédio de apartamentos a cerca de um campo de futebol de distância da minha posição, ponto provável de passagem do sniper e da parelha. Fiz-lhe sinal de OK, virei para lá o “ferrolho” e preparei-me.
Suava agora e sentia frio na testa e na curva das costas acima do dito. As mãos suadas dentro das luvas tácticas indicavam-me o quão perto estava da morte. Num instante era caçador, noutro caça. O “aranhiço” continuava a sua vida indiferente àquela merda toda… só lhe interessava a recolha de caganitas de morcego.
Nas ruínas indicadas, uma porta de um guarda-fato abriu-se lentamente e saiu de lá um “deles”. Fez um sinal para dentro do móvel e saiu o outro. Estavam relativamente relaxados, convencidos de ter iludido a perseguição. De repente um deles avista ou suspeita da presença de Peter e começam os dois a correr para a encosta, procurando o apoio dos seus, ao mesmo tempo que abriam fogo.
Tiros, gritos, mais tiros e palavrões, eis o inferno em acção. As orelhas das mães de ambos os lados ardiam com o que os seus filhos gritavam em várias línguas. Já não suo, só sinto o coração latejar na cabeça e um zumbido nos ouvidos. A boca secou e tenho os sentidos em alerta. Aí estão eles!

Reparei então, só então, que o impacto de um tiro num corpo não causa o efeito igual ao dos filmes. Primeiro é o pó acumulado na roupa que deixa uma nuvem no ar e só depois o sangue aparece. Por um óculo têm-se uma visão privilegiada e uma melhor percepção da tragédia.
Tombaram os dois. Não é pessoal nem fruto de ódio, é assim mesmo, ou eles ou nós…antes eles! Evans ergue-me o polegar e tira umas fotos oficiais para o relatório.
Durante a guerra, o engenho humano, de sérvios, croatas e bósnios, abriu passagens entre paredes de apartamentos, de um prédio para outro, por quarteirões inteiros, colocando mobília a ocultar o buraco. Daí aqueles “mecos” me terem aparecido a menos de 100 metros de dentro de um guarda-fato.
Amanhece agora e os fantasmas vão-se…mas voltam um dia destes…sempre. Há doze anos e ainda está aqui tudo bem vivo…que puta de recordação!