sábado, dezembro 02, 2006

A Caçada - Parte III








“Levar tropas sem treino para a guerra é desperdiçar vidas humanas.”
Confúcio, Filósofo Chinês, 500 A.C.




Uma caminhada de mais de cinco horas debaixo de chuva, vento e trovões, a par de um frio balcânico, deixaram-nos entorpecidos de tal forma que quando encontrámos uma saliência rochosa, assim tipo pala de boné, nos atirámos para o chão seco e ali ficámos, encharcados e a tremer de frio. Cada movimento doía mais do que o frio em si e assim aguardámos o amanhecer com a esperança de que os nossos perseguidores houvessem desistido de nos dar caça.
O rádio “piou” pela última vez a meio da madrugada para informar da recolha de todos os teams da área após o inicio da perseguição.
- White Raven two, white raven two, this is Ravens Nest, over!
Chamaram-nos assim a intervalos regulares por mais de duas horas e nunca obtiveram resposta. De vez em quando chegava-nos o som dos “helis” que levavam os nossos camaradas de regresso a “casa”. Qualquer lugar fora dali era bom, até uma fossa cheia de m****.
Ouvimos, com um aperto no peito, a comunicação da heli-exfiltração do resto da nossa equipa que ficara “lá em cima”. Foram os últimos a sair e soubemos depois que o nosso team lider, o Major Nick, havia proposto ficar na zona e procurar-nos. Fora-lhe negado e sei o quanto lhe custou. Com homens como ele ainda hoje, nos meus 47 anos, não hesitaria em partir para onde quer que fosse. Não é só lealdade o que nos une, é uma fraternidade forjada na partilha do perigo e um respeito pelo irmão de armas que vai ao ponto de se dar a vida por ele. Isto contraria tudo o que o instinto humano nos diz para fazermos e nestas alturas compreendemos as mães que oferecem a vida pela dos filhos. É o mesmo sentimento de desapego.
Estávamos sós e sabíamos que era assim. A nossa presença na área não poderia ser conhecida e materializada na captura, sob perigo de fortalecer a posição sérvia e o enfraquecer das Nações Unidas e da NATO. Daí que embora estivéssemos ao serviço oficioso da primeira, em caso de captura éramos da segunda.

Durante a noite, a espaços, ouvíamos os altifalantes das unidades de guerra psicológica proporem a nossa apresentação voluntária às forças regulares sérvias, a qual seria objecto de respeito pela Convenção de Genebra e que, em caso de cairmos nas mãos da milícia sérvia, nada nos era garantido. Admitiam assim que tinham forças “descontroladas”. Filhos daquela…
Estávamos conscientes do perigo…chovia tanto…olhei o relógio, eram 03H15 da madrugada…o barulho da chuva, o relampejar, o som dos trovões e o frio…., nunca senti tanto frio, m**** de frio!
Sorri e gargalhei baixinho quando me ocorreu um dizer de um instrutor e camarada em Penude, o 1º Sargento Oliveira, “Meninos, não chove nem há orvalho, está é um frio do car****”. Depois lembrei essa máxima dos livros da “ciência” militar escritos em pomposos e agasalhados gabinetes; “A guerra é um fenómeno de natureza contínua, faz-se quer de dia quer de noite, com bom ou com mau tempo.” – Pró cara*** os escribas da doutrina da morte e da estupidez.
Novo relâmpago que iluminou brevemente o buraco onde estávamos. Evans passava pelas brasas agarrado à “saw”, enquanto Stefan segurava nas mãos um rosário e olhava lá para longe. Fiz-lhes sinal que descansassem um pouco que eu ficaria de sentinela a primeira hora. Aninharam-se o mais que puderam e deixei de os sentir mexer.

-Ssssssstttt!
Devo ter passado pelas brasas pois acordei com o barulho do rádio no auricular. Lá fora chovia menos agora e o vento fora-se. Os relâmpagos, mais espaçados caminhavam para leste, para lá da margem esquerda do rio Drina.
Eram 04H43 da madrugada e novo barulho no rádio fez-me dar um pontapé a cada um dos meus camaradas.
-White Raven two, White raven two, this is Father Raven! – Quem seria father ravem? Não havia ninguém da lista de endereços rádio com aquele Call sign. Seria uma armadilha sérvia? – A voz, no entanto, soou-nos demasiado british, garantindo que não estávamos esquecidos e que tinha a certeza de que estávamos vivos uma vez que os sérvios continuavam à nossa procura e ele tudo faria para nos trazer de volta.
Amanhecia agora um dia cinzento mas sem chuva e estávamos já uns bons quilómetros para sul de Gorazde. Decidimos que nos aproximaríamos do rio ao anoitecer e que a corrente faria o resto, arrastando-nos dali para fora.
Ao início da tarde ouvimos claramente o som de jactos e julgámos serem deles. Por uma aberta no arvoredo foi claramente possível identificar uma parelha de jactos Panavia-Tornado a baixa altitude. Eram aviões da NATO, o que fariam ali?
Aguardávamos o anoitecer quando ouvimos novamente o barulho de jactos e pouco depois, para norte de onde nos encontrávamos, o ruído de explosões e alguns estampidos de antiaérea.
Posteriormente soubemos que Slobodan Milosevic não dera ouvidos ao velho (Gen. Hugh Rose) para abandonar Gorazde e as suas forças pagaram o preço. Estávamos a 12 de Abril de 1994. Este facto histórico, iniciativa de uma grande chefe militar, à revelia um pouco da política ocidental, fez com que a nossa retirada da área tivesse mais probabilidades de sucesso.

A noite estava escura como breu. Nem uma luz naquela paisagem trágica. Estávamos a uma escassa dezena de metros do rio. Despejámos as mochilas do supérfluo e destruímos e enterrámos o que nos faria peso, rádio incluído. Pegámos nos preservativos que nos haviam “caído” no primeiro abastecimento e toca a “encher balões”. Depois de cheios colocámo-los dentro das mochilas. Encontráramos um tronco de árvore seco e transportámo-lo até à margem. Mochilas colocadas para a frente, ao contrário da posição normal, para manterem a cabeça fora de água. Uma última “camisinha” no cano da arma para a proteger da água e de lama. Havíamos cortado umas ramagens que colocamos sobre a rede camuflada que nos cobria a cabeça, entrámos na água e aí fomos nós corrente abaixo.
Ao amanhecer do dia seguinte, após mais de oito horas dentro de água, saímos numa prainha fluvial a norte de Ustikolina, de onde um grupo de mulheres com trajes bósnios nos havia acenado. A Resistência Bósnia ouvira falar dos “desaparecidos” e procuravam cadáveres dos seus que viessem com a corrente.
Deram-nos comida quente e roupas típicas (que ainda guardo). Emocionámo-nos com a generosidade de quem tudo lhe foi roubado e ainda tinha para dar. Sentado no chão duma casa, com as mulheres por detrás de nós, solucei em lágrimas porque me lembrei dos meus filhos, então um com cinco anos e os gémeos com nove meses. Uma mulher bósnia de idade já avançada fez-me festas na cabeça e cantarolou qualquer coisa…apeteceu-me chamar-lhe avó…

Nesse dia à tarde fomos recolhidos por um heli canadiano e regressámos a “casa”. Mais tarde, no aeródromo de Butmir, após a nossa chegada, conhecemos o homem que prometeu trazer-nos de volta e que tudo fez para isso. Não esperou que o saudássemos militarmente, abraçou-nos e serviu-nos ele uma caneca de café. Ele, um general do Exército de Sua Majestade e comandante da UNPROFOR. Falo obviamente do General Sir Hugh Michael Rose, um dos homens que mais admiro. Caía o pano sobre a operação “Rainy days”.

23 Comments:

Blogger ALG said...

Fiquei sem palavras, mais uma vez!

Abraço

02 dezembro, 2006 18:48  
Blogger maria said...

Comoção total...
Um beijo

03 dezembro, 2006 22:19  
Blogger Um Poema said...

Mais um pedaço da tua memória. O meu respeito e a minha saudação vão para ti.
Um abraço

04 dezembro, 2006 00:53  
Blogger LUIS MILHANO (Lumife) said...

Acompanho os anteriores comentadores: deixas-nos sem palavras, comovidos e algumas lágrimas afloram acompanhando o relato.

Um abraço amigo

04 dezembro, 2006 15:09  
Anonymous Anónimo said...

já estou cá novamente, não resisto a ler as estórias e vibro com cada palavra contada. Força pois acredito que contar isto tudo é uma relembrar de coisas que te podem ferir! ainda há homens! sofia

04 dezembro, 2006 15:49  
Blogger O Transmontano said...

Desde já partilhando todos os comentários, não deixo de criar alguma analogia entre este relato e muitos outros de camaradas nossos que ainda hoje sofrem com as memórias guardadas...Enfim...Nem quero dizer mais nada!!!
Se me me permitires, e fazendo uso da minha educação e elegância no trato, queria agradecer a todos os visitantes deste espaço a partilha de opinão e de um modo muito especial àqueles que me dirigiram palavras de apreço. Permite-me que lhes diga do fundo do meu coração o meu grande bem-hajam.
Um abraço amigo.

04 dezembro, 2006 18:18  
Blogger Ana Luar said...

“Levar tropas sem treino para a guerra é desperdiçar vidas humanas.” pura verdade meu querido.
Ler-te faz-me sentir pequena perante as memórias do sofrimento.

Um beijo muito terno Manel....

05 dezembro, 2006 14:51  
Blogger LUA DE LOBOS said...

Li-te com muita dificuldade porque fico num farrapo quando vejo tanta bravura e tanta falta de respeito pelos nossos soldados... vira-me o estomago.
Neste momento estou numa fase de muita fragilidade e estou com pouca estaleca para ver mais injustiças e não me por aos coices literalmente!!!
Chorei por vós
um xi muito apertado
maria

05 dezembro, 2006 21:22  
Blogger Afrodite said...

"Pró cara*** os escribas da doutrina da morte e da estupidez".

Aterradora e sublimemente relatada mais esta tua experiência. Pelo 'Raven', mas não só, ocorreu-me outro escrito(não teu)mas igualmente sublime:

"Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

06 dezembro, 2006 03:44  
Blogger DIGNIDADE said...

Olá Manel!
Começo por te agradecer o poema que me deixaste, bem como o comentário...já estão religiosamente guardados no meu "Livro em Branco", onde só têm morada os que Adoro!
O teu relato, a tua experiência, a tua memória deixam-me sempre arrepiada e com vontade de imitar a "tua avó bósnia".
Da guerra tenho poucas memórias e sempre com a intensidade que, enquanto criança, consegui guardar. Depois há as imagens aterradoras dos media e há o senso comum...nunca fui militar (e em Portugal jamais seria - sei que isto é ultrajante e anti-patriótico, mas este Portugal não é mátria, é madrasta)...
Mas tenho um imenso respeito e admiração por ti e pelos teus camaradas. És mesmo um Herói e sê-lo-às sempre, ainda que "sem farda e sem medalhas".
Um bj!

07 dezembro, 2006 16:22  
Blogger Non said...

Olá Manel

Desculpa a ausência e o silêncio. Tenho andado em muito poucos blogs por falta de tempo e ultimamente disposição.
Obrigada por me teres mandado o link.
Triste o porquê da mudança.
Cambada.

So mudam as moscas mesmo!

Beijo

M

09 dezembro, 2006 13:31  
Blogger Isabel Filipe said...

Estes teus relatos deixam-me sempre amargurada....


bfds
bjs


p.s. já actualizei o teu link

09 dezembro, 2006 16:38  
Blogger david santos said...

Manuel, olá!
Um bom final deste e um 2007 com tudo o que desejares.
Parabéns.

09 dezembro, 2006 22:07  
Blogger Afrodite said...

Reencontrei-te. Beijo

10 dezembro, 2006 02:36  
Blogger Micas said...

Leio-te em silêncio, e chego sempre ao final sem palavras para te deixar, deixo-te apenas o meu enorme respeito pelo Homem que és, com "H" muito grande, e pelo coração que tens.
Um abraço apertado Manel

12 dezembro, 2006 20:41  
Blogger agua_quente said...

Os teus textos envolvem-nos da primeira à última palavra. E despertam sempre emoções.
Beijos

13 dezembro, 2006 22:50  
Blogger Princesola said...

Venho aqui muitas vezes...
Sempre em silêncio.
Beijo

15 dezembro, 2006 14:53  
Blogger Menina Marota said...

Vim ler-te. Já descobri porque não entrava no teu blogue, mas cá cheguei! Um pouco triste, não só pelo texto...

São estas memórias, que nos dizem de que RAÇA, é feita um HOMEM!

Vim desejar-te um FELIZ NATAL a ti e a todos os teus.

Um abraço carinhoso ;)

16 dezembro, 2006 18:27  
Blogger João Fialho said...

Vim hoje até aqui, pela 1ª vez.

Voltarei para ler com mais tempo, devido ao adiantado da hora, pois amanhã é dia de trabalho ....

18 dezembro, 2006 00:40  
Blogger Goticula said...

Querido amigo, obrigada pelos teus comentários.Pois não tenho navegado nada... sabes muito trabalho.
Voltarei com mais tempo.
Bjinhos

19 dezembro, 2006 18:31  
Blogger Alma de Poeta said...

Olá Manel...Não poderia deixar de passar agora por aqui para te desejar um feliz Natal, cheio de paz e amor junto daqueles que mais amas.
Deixo um beijo com carinho.
Isabel

20 dezembro, 2006 20:11  
Blogger Amita said...

Olá Manel
Porque o trabalho urge e o tempo não perdoa... e porque não poderia deixar de passar por aqui para, com muito carinho, te desejar umas alegres Festas com muito amor e Paz.
Um bjinho grande

21 dezembro, 2006 18:44  
Blogger Isabel Filipe said...

Querido Amigo,

Não há limites para o homem que possui a capacidade de sonhar. É necessário muito pouco para provocar um sorriso e basta um sorriso para que tudo se torne possível.
Descobrimos que o Ano que termina vale a pena, quando começamos a enviar e receber os cartões de Natal. Afinal, de algum modo, aprendemos que o que realmente importa são os sentimentos, é o amor... É estarmos ligados, unidos. É isto que comemoramos: O nascimento da esperança de um mundo melhor. Muita paz, alegria e amor na tua vida e de todos que te são queridos. Feliz Natal! Feliz 2007.
Beijinhos
Isabel Filipe

22 dezembro, 2006 14:29  

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