segunda-feira, outubro 23, 2006

A Caçada - Parte II

Este sábado houve jantarada e regressei de boleia até perto de casa. Saí do carro e senti a chuva bater-me na cara “arrefecendo-me”…soube-me bem. Trazia comigo emoções em turbilhão. Instintivamente, ao som dos meus passos na calçada, assobiei “Sounds of silence”, enquanto recordei as pessoas que fazem agora parte desta nova faceta da minha vida.
Que noite para passear… a chuva e o mau tempo são meus amigos. Fecho os olhos enquanto caminho e aquela sensação traz-me de volta recordações. Sacudo a cabeça e solto um palavrão, numa tentativa, sempre vã, de exorcizar o passado.
Abro a porta de casa e às escuras faço tudo. A escuridão e eu damo-nos bem. Atiro-me para a cama e sorrio relembrando o riso daqueles com quem passei as últimas horas. Boa gente, idealista, autêntica e generosa.
São 06H10 da manhã. Não dormi mais do que duas horas. Voltaram os pesadelos, especialmente o meu de “estimação”. Acordei suado, coração a latejar nas têmporas, tremor nas mãos, secura na boca e uma dor na alma…grande…as lágrimas voltam e vou espreitar o sono dos meus filhos. Dormem em paz e sossego os meus anjinhos. Vou à cozinha e faço café forte. É já uma rotina nestas noites em que o passado se torna presente de vivo que é, aliás, nunca foi passado pois está sempre comigo.
Às escuras, abro a janela da cozinha que dá para o quintal, enquanto saboreio o café duplo quentinho. O barulho da chuva nas árvores atira-me de novo lá para trás nas minhas memórias…

Amanhecia nas montanhas de Gubavitsa e uma névoa impenetrável tomou o lugar da chuva. A noite, essa, havia sido de alerta total. Os lobos haviam saído para matar e o início da madrugada trouxera-nos o cheiro da barbárie. Um cheiro agridoce, diferente dos outros cheiros. Queimavam-se corpos para esconder os vestígios da animalidade sanguinária. É um cheiro que não sai nem com mil banhos, entranha-se na memória e fica cá para sempre.
O homem é definitivamente o único animal que caça os da sua espécie por ódio e tira prazer disso. Eu ouvi-o, cheirei-o e vi-o.
Na chuva impenetrável daquela noite, onde nem os dispositivos de visão nocturna funcionam, foram os sentidos que nos descreveram o horror trazido pelo vento.
Que porra de clima este. Vestimos o “poncho” impermeável e o efeito de estufa deixa-nos molhados com o suor. Tiramos o “poncho” e ficamos encharcados até aos ossos. Safam-se os pés nas botas de montanha canadianas oferecidas pelo meu amigo Dany “Saguenay”, assim chamado por ser natural da terra dos índios daquela tribo.
Volta a realidade…Gritos de crianças, o choro aflitivo dos bebés e das mulheres violadas e violentadas, o choro convulsivo dos idosos e o do grito raivoso dos homens válidos a serem executados. Tudo isto entrecortado pelo crepitar das chamas e o ruir das estruturas de edifícios. O ladrar raivoso dos cães endoidece-me. Eis o que nos trouxe o vento naquela madrugada de Abril de 1994. Não precisávamos de ver para saber, até S. Tomé dispensaria a visão da tragédia.

Em silêncio, cerca das 2 horas da madrugada, o meu sub-grupo de três homens, aproveitando o ruído da barbárie e da chuva, recebera ordens para se deslocar em silêncio para um ponto mais baixo que permitisse uma melhor avaliação da situação. Éramos novamente os cordeiros em terra de lobos.
Aproximamo-nos dos arrabaldes de Gorazde por oeste noroeste, após quase 4 horas de caminhada, deixando Jabuka à esquerda. Usava-mos um lenço envolvendo a cara para dissipar o bafo quente da expiração, pois podia trair-nos. Eram agora mais perceptíveis os gritos dos carrascos e das vítimas. Torturavam ainda alguém para obter informações. A impunidade reinava e os sérvios sabiam-no.
Uma hora antes havíamos parado para recolher algumas plantas e fungos que esmagámos e esfregámo-nos nos sovacos e por todas as partes de onde se exala mais odor. Era difícil não cheirar mal após vários dias com a mesma roupa, mas o faro dos cães, apesar da chuva, podia facilmente detectar-nos e então…
Por cautela misturámos comprimidos esmagados com a pimenta das rações de combate e adicionámos-lhe vidro moído das lâmpadas de reserva das lanternas e dos filtros de cor das mesmas. Tal mistela, que guardámos dentro de um saco de plástico metido dentro de outro, liberta um odor intenso para os cães, atraindo-os e afastando-os de nós. É só polvilhar uma pequena peça de roupa ou um farrapo da mesma com a mistela e a força de aspiração dos cães fará o resto. Em poucos minutos o vidro moído fará o trabalho e os pobres bichos morrerão afogados no seu próprio sangue. São eles ou nós, por muito que nos doa.

Chegámos a um parapeito natural de onde se tinha uma vista privilegiada sobre o vale do Drina. Tínhamos de nos manter ali até ao anoitecer, regressando ao “conforto” da equipa durante a noite seguinte. A menos de duzentos metros de onde estávamos, junto a uma pequena cascata, cerca de quarenta elementos da milícia sérvia descansavam dos massacres nocturnos. Os que estavam de pé pareciam bêbados que nem cachos. Nas casas ainda intactas era visível uma inscrição em servo-croata; “zaizeta” (ocupada).
De repente, a menos de trinta metros de onde estávamos, para a nossa direita e ao mesmo nível de altitude, um miliciano sérvio, de cabelos já grisalhos, saiu de um abrigo de montanha, desses de madeira, caminhando direito à nossa posição. Vinha a compor-se, apertando o Anorak. A sinalética do costume e colocámo-nos em posição para o eliminar caso tropeçasse connosco. Teria de ser à faca, para não alertar os outros.
O coração batia descontroladamente, apesar de não ser a primeira vez que estava naquela situação. Parou a cerca dois metros de Stefan e, quando colocou o cigarro na boca para o acender, o nosso guia croata saltou eliminando-o silenciosamente. Subitamente ouvimos uns gemidos do mesmo local de onde tinha saído o miliciano. Fui lá caminhando curvado e a coberto das vistas do vale, enquanto os outros escondiam o corpo por entre o mato. Uma garota, não mais de quinze anos, com as roupas rasgadas, tentava limpar o sangue e os vestígios da violação que lhe corriam pelas pernas nuas. Abriu os olhos quando me viu e tive de lhe dar com a coronha da SA-80 para a impedir de gritar, denunciando a nossa presença.
Mais tarde, quando acordou e depois de se ter limpo, vestimos-lhe a farda do morto e Stefan indicou-lhe o caminho de montanha por onde fugir. Demos-lhe alguma comida e as guloseimas da ração. Nunca mais a vimos nem dela soubemos. No entanto tinha-nos visto e podia denunciar-nos sob tortura, para além de termos deixado um cadáver que mais tarde ou mais cedo seria descoberto.
Reportámos a situação via rádio e abandonámos a área rumando a sul, paralelamente ao rio Drina.
Após uma hora de caminhada Evans escorregou e caiu, danificando o emissor do rádio. Ouvíamos claramente os outros, mas parecia que ninguém nos ouvia. A noite descia e a escuridão voltava. Aproximava-se uma tempestade e os relâmpagos projectavam sombras ameaçadoras na floresta. Para norte, o ruído dos tiros e o ladrar dos cães não pronunciava nada de bom. Encontraram o corpo.
Ouviam-se claramente motores de viaturas nas estradas de montanha, a caçada havia começado.

25 Comments:

Blogger ALG said...

Companheiro, que dizer de mais um relato intenso e soberbamente escrito. Nada, parece-me, tal a força das emoções que ressaltam dos teus textos, assim como, o mal de que o ser humano é capaz, e ainda se gaba de ser inteligente.
Mas temos-te a ti para nos dar conta dessas situações, as que ninguém conta e que não fazem as parangonas dos jornais e das tv's.
Obrigado por partilhares e um abraço.

23 outubro, 2006 21:49  
Blogger Barão da Tróia II said...

Nunca estive em guerra nenhuma. Mas tenho um sonho recorrente. tiros montanhas de tiros de todos os calibres, gente estropiada, fujo com um dois ou três companheiros, tiros à direita e à esquerda, inimigos que nunca morrem, que brotam do horizonte, cad vez mais encarniçados e me perseguem, acordo a chorar, a gritar, acordo cansado como se levasse uma tareia, nunca estive numa guerra, nem sei explicar porque sonho com isto. Excelente post. Boa semana

23 outubro, 2006 22:10  
Blogger Um Poema said...

A guerra, as suas bestialidades e desumanidades e os fantasmas que perseguem, sempre perseguirão, quem não perde, nunca perdeu a noção da diferença entre o CERTO e o ERRADO, em relato na primeira pessoa.
Obrigado pela pertilha.
Um abraço solidário.

24 outubro, 2006 17:15  
Blogger O Transmontano said...

Manel!
Onde é que eu já vivi isto?
Pois é, quantos ex-combatentes não têm na alma, essas mazelas? Quantos ainda hoje não sofrem desesperadamente o trauma do ultramar?
E o que fazem os políticos? Branqueiam essa situação porque são lutadores de Salazar. Filhos de uma grande p... Mas, e os chefes militares, esses grandes cobardolas que só são generais porque não morreram em alferes, que defesa fazem de homens, mulheres e jovens que nunca mais voltaram a ser pessoas de alma perfeita?
Metem os cornos no chão arreiam as calças e apenas gemem depois de sentirem o bafo quente dos políticos.
Obrigado amigo. Só tenho pena de em certa medida me sentir com vontade de caçar estes filhos da p... todos para lhes meter uns tiros entre o par de cornos que lhes não nascem, pois nem isso merecem....
Desculpa a revolta, mas tu sabes porque a sinto.....
Um abraço e bem-hajas.

24 outubro, 2006 22:15  
Blogger Menina Marota said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

25 outubro, 2006 08:06  
Blogger Menina Marota said...

Também eu acordei cedo, ao som da chuva que não pára de bater nas vidrasças da janela.
Já bebi o café forte de que tanto gosto e apressei-me a vir ler-te.
Um nó na garganta, impede as minhas palavras e a ideia do terror que o ser humano é capaz de proporcionar aos seus pares, aterroriza-me.
Morre-me na ponta dos dedos aquilo que o meu coração sente e não sou capaz de escrever, emocionada pelo teu relato e por tudo aquilo que ainda sentes, perante o cenário que viveste, em nome do restabelecimento de paz...num País que não era o teu, mas onde foste entregar a tua alma e a tua força.
Grata pela partilha.

A chuva lá fora continua a cair.. como lágrimas de dor...

Beijo

25 outubro, 2006 08:08  
Blogger Ana Luar said...

Sabes Manel… eu não tenho noção nenhuma de uma guerra a não ser aquilo que vejo na tv…. E ainda bem.
Não sei a que cheiram os corpos queimados… não sei o que é o barulho de uma bala nos ouvidos… não sei o que é o medo de morrer…
não sei…
não sei e tb não quero saber.
Mas sei, o que é sentir dor, pelas dores dos que sofrem essas vivências…
sei o que são sentimentos de revolta por permitirem que pessoas… como tu, como eu, e como tantas outras a quem nunca foi perguntado nada… tem que estar sujeitas.
Dor de ver mortos, os filhos de alguém…filhos que poderiam ser as minhas filhas.
Isso dói…. Dói não saber o que fazer para minimizar essas situações…dói a impunidade permitida a assassinos,….doi a apatia a falta de esperança eu se forma dentro de nós ao ver cenas dessas… mesmo que seja na tv.
E dói saber que esses pesadelos perduram por uma vida na cabeça de pessoas que como tu abraçaram uma causa………. E por ela sofrerão até ao fim….


Um beijo Manel…. Sem dor…. Com muitooooooo muito carinho

25 outubro, 2006 13:54  
Blogger Cristina said...

Olá,
Hoje venho aqui fazer-te um convite especial. Criei um blogue para todos participarem, basta mandar-me uma foto do teu automóvel, e irei criar um "chain" dos pópós de todos os amigos. Vou fazer conta contigo!
beijinhu
:)

26 outubro, 2006 12:25  
Blogger Isabel Filipe said...

... arrepiante o teu relato.

Quanto à imagem: claro que podes. Já te disse que não precisas pedir-me estás à vontade para usares oq ue quiseres.

Bjs

26 outubro, 2006 16:13  
Blogger Paúl dos Patudos said...

Olá
Visitei pela 1ª vez este teu espaço e gostei bastante.
Mas...
Vou pedir-te desculpas por não conseguir terminar de ler todo o seu conteúdo, porque fiquei com uma vontade enorme de chorar á medida que ia lendo. è muito realista e duro , mas esta é a realidade em várias partes do mundo, infelizmente.
Um abraço
Aproveito para te deixar o convite para passares no meu modesto blog, lá a porta está sempre aberta a pessoas solidárias como tu.

www.pauldospatudos.blogspot.com

Ana Paula

26 outubro, 2006 18:59  
Blogger Leticia Gabian said...

Caro Manuel,
Já passei por aqui umas três ou quatro vezes sem conseguir dar continuidade à leitura. Hoje, fui até o fim. Como escreve bem! Tem o poder de nos colocar lá, lado a lado contigo e seus companheiros. Até o cheiro agridoce nos invade as narinas. Se consegue nos passar essa sua vivência com tamanha riqueza de detalhes, imagino a crueza das imagens dentro da sua memória. Diante de exemplos como o seu, vejo que nada vivi. Fortemente questiono o por quê de alguns terem que se sacrificar em vivências traumatizantes, enquanto outros permanecem com suas vidas nababescas e vazias. É tudo muito injusto.
Um forte abraço de uma amiga do Brasil.

26 outubro, 2006 20:08  
Blogger Micas said...

Leio-te em silêncio, porque as palavras não saiem nem são necessárias. Por muito que se tente nunca conseguiremos sequer imaginar por tudo o que passaste e que ainda te consome. Deixo-te apenas um abraço apertado e sentido.

26 outubro, 2006 21:33  
Blogger Barão da Tróia II said...

Passei para desejar bom fim de semana.

27 outubro, 2006 16:07  
Anonymous Anónimo said...

Meu caro, se eu usasse chapéu, tirava-o ao teu blog, sincera e respeitosamente.

Abraço.

30 outubro, 2006 15:54  
Blogger Luna said...

Sabes Manuel, eu leio-te ,mas é muito dificil te comentar,Pois tudo o que possa dizer, é sentido mas superficial, o que posso dizer é que acho terrivel terem lutado por uma guerra que não pedimos, fomos forçados a entregar as vidas, o sangue e suor, como tu tantos outros ainda estão em sofrimento pelo que viram e passaram,e nós estamos impotentes sem nada poder fazer para minimizar o sofrimento
Beijos

30 outubro, 2006 21:06  
Blogger DIGNIDADE said...

Olá Manel!
Quanta saudade de "estar contigo".
Agradeço-te, enquanto mulher, pelo bem que conseguiste fazer a tantas vítimas, pela entrega, pelo empenho de uma vida...
Também enquanto mulher, honro-me por haver homens como tu, e enquanto ser humano sinto-me impotente, também por ti.
Um bj!

31 outubro, 2006 17:32  
Blogger DIGNIDADE said...

Olá, outra vez!
Queria só acrescentar que são este tipo de catástrofes (provocadas pelo homem - as guerras, ou pela natureza - os sismos e tempestades), que pelo seu poder destruidor, em onda de choque, nos acordam da(s) pequenez(es) do quotidiano e nos fazem redimensionar as prioridades.
Só lamento que esta tomada de consciência consuma e destrua tantas vidas, de forma tão cruel.
Para ti, o meu apreço e admiração!
Um bj!

01 novembro, 2006 00:46  
Blogger Henrique Santos said...

Meus caros,
Foi difícil estar sem vcs, foi difícil conseguir reaparecer, mas ... estou feliz. Vou fazer visitas, vou inteirar-me de tudo o que se passa...
Quero voltar!
Ricky cheio de contentamento!

PS Um abraço especial. Isto ainda não funciona a cem por cento, pois há blogs que não consigo aceder. Maldito ACTIVEX, mas aqui já posso...
Richy

03 novembro, 2006 14:46  
Blogger Goticula said...

Passei para te deixar um beijinho.

bfs
beijinho

03 novembro, 2006 15:06  
Blogger Amita said...

Olá Manel
Perdi as palavras perante as tuas de uma vivência atroz. Como bem dizes, o maior predador do homem é ele próprio quando em demência. Contigo sofri e no meu coração te compreendo e valorizo.
Um bjinho grande

07 novembro, 2006 18:21  
Blogger LUIS MILHANO (Lumife) said...

Como nem sempre há possibilidades de visitar os amigos coloquei hoje um poema dedicado a todos os que considero como tal e a quem desejo tudo de bom.

Os teus relatos duma tragédia relativamente actual enche-nos de tristeza mas é preciso denunciar o que se passou.

Um abraço

08 novembro, 2006 01:06  
Anonymous Anónimo said...

Alguns de vocês tem tido a desventura de ter visto coisas muito dramáticas e o pior das pessoas. Mas, além dessas atrocidades, também partilharam de momentos grandiosos, como os gestos de compaixão e solidaridade, que fazem acordar o melhor de nós mesmos. E para aqueles que não temos vivido em primeira pessoa estes conflictos e visto estes horrores, os teus relatos dão-nos a oportunidade de agradecer a nossa sorte e obrigar-nos a sentir o compromisso de lutar por algo melhor.
Obrigada.

08 novembro, 2006 10:48  
Blogger agua_quente said...

Um texto extraordinário. Experiências que arrepiam.
Beijos

09 novembro, 2006 21:34  
Anonymous Anónimo said...

Ola Manel td bem?
B f semana e beijinho*

11 novembro, 2006 02:12  
Blogger Paulo said...

Esta procura de reconstituir um tempo, através do fragmento que uma conversa constitui é, no minimo um desassossego permanente. A verdade possível resultante do desgaste da memória é, por vezes, o "rastilho" dos instantes de factos que a história , por omissão, teima em deixar "morrer"..
Mais uma vez, obrigado por ter este blogue.
Abraço
Paulo

11 novembro, 2006 23:00  

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