domingo, setembro 17, 2006

A caçada - Parte I

Dedicado à memória e à coragem dos camaradas e amigos da UNPROFOR que caíram pela PAZ desde Fevereiro de 1992 até 31 Março de 1995:

- 3 Observadores militares.
- 194 Militares dos diversos contingentes.
- 2 Polícias civis.
- 2 Civis dos Quadros internacionais da ONU.
- 3 Civis Contratados localmente.

Dores físicas suportáveis e outras, mais difíceis de curar, afastaram-me uns tempos do montado onde partilho venturas e desventuras e onde sou capaz de narrar episódios que de viva voz são difíceis de reproduzir.
Os que me conheceram enquanto militar no activo sabem que apesar de alguns “chefes” que “tive” (fossem eles meus e tê-los-ia mandado fora), me enviarem sempre em missões que, aparentemente, seriam daquelas “para limpar o cu a meninos”, a realidade veio demonstrar que alguns pretensos “adivinhos”, denominados militarmente de planeadores, falharam.
Assim aconteceu quando fui enviado para a Bósnia Herzegovina em Janeiro de 1994, altura em que sob comando francês as forças da UNPROFOR (United Nations Protection Force), eram diariamente achincalhadas para gáudio de Ratko Mladic, Slobodan Milosevitc e Radovan Karadzic. Sei-lhes de cor os nomes porque foram estes crápulas que ordenaram a chacina da população civil assim como a morte de civis e de militares da ONU.

O homem que operou a mudança é britânico, general na reserva e tem mais categoria num alçar de perna que solte ar pelos fundos que a grande maioria dos militares que conheci em 27 anos de carreira.
O general Hugh Michael Rose, assumiu o comando da UNPROFOR em Janeiro de 1994, constituindo um sinal claro de que algo iria mudar. Este oficial foi comandante do 22º Regimento SAS e o oficial responsável da força de elite que tomou de assalto a embaixada do Irão em Londres em 1980.
No início de Abril de 1994, quando os sérvios se aproximaram de Gorazde para a cercarem e para chacinarem a sua população, foram enviados por infiltração aérea (heli-transporte) 8 grupos de reconhecimento a 9 elementos cada, escalonando-se em profundidade com quatro grupos na frente, dois instalados nas montanhas de Gubavica a oeste da cidade e os outros dois a sudoeste da cidade nas montanhas de Misjak. Uma segunda linha a 3/4 Km para a retaguarda era constituída por 3 grupos e tinha como missão interditar e retardar qualquer perseguição que fosse movida aos grupos da frente, quer minando itinerários, quer emboscando os perseguidores, quer, em última análise pedir apoio aéreo. O grupo mais à retaguarda, a 2/3 Km dos segundos tinha por missão a selecção, segurança e protecção de áreas em altitude para heli-recolha (exfiltração).
A missão destes grupos, para além das forças convencionais da UNPROFOR no terreno, limitadas nos movimentos, era a de detectar, referenciar, seguir e informar da presença, localização, composição, equipamento e armamento das forças sérvias.

Na madrugada de 6 de Abril, o comandante da UNPROFOR em pessoa, o general Rose, veio ao aeródromo de Butmir, a sudeste de Sarajevo, apertar a mão a todos os que fomos naquela missão. Setenta e dois homens repartidos por nove helicópteros, partiam por grupos de acordo com o escalonamento no terreno, a começar da retaguarda para a linha mais avançada, a intervalos de 10 minutos, bem para dentro da área de intervenção e sob controlo das forças sérvias.
Recordei-lhe as palavras na despedia. A garantia de que estaria atento a todos os nossos movimentos e se algo ameaçasse correr mal que nos tiraria da área nem que lá fosse em pessoa. Aquilo que poderia parecer uma fanfarronice, veio a revelar-se a assinatura deste comandante, homem e militar, constituindo para mim o maior privilégio da minha carreira o ter servido sob as suas ordens e naquela operação.
Mais tarde vim a saber que enquanto o último homem do último grupo não regressou, o general Hugh “Thorn” Rose, dormiu sempre no centro rádio, numa cama de campanha como um comum soldado.
Pouco mais de uma hora de voo havia passado e voávamos agora de sul para norte, a escassos duzentos metros da berma esquerda da estrada de Fotcha-Gorazde-Ustipratcha. Viam-se claramente os clarões dos incêndios, os faróis impunes das viaturas sérvias e o serpentear dourado do rio Drina. Dificilmente nos detectariam, uma vez que os helicópteros voavam com os supressores de ruído do motor ligados, para além do “empastelamento” (interferência) das suas comunicações e radares.
No meio da escuridão procurávamos distinguir algum sinal de ameaça ao desembarque. Rezava para que não torcesse um pé no pequeno salto que daria quando da saída do “Heli”. Luz verde, porta aberta, “pássaro” a pairar e um a um, pelas duas portas fomos saindo, desaparecendo em seguida na escuridão.

Tudo decorria pressurosamente, alternando entre vigiar e dormir ou conversar em voz baixa. Na manhã de 9 de Abril, uma das equipas foi referenciada acidentalmente junto a uma nascente de água. A presença dissimulada na área caiu por terra e, na madrugada seguinte, os sérvios encetaram a perseguição, a qual culminou com uma troca de tiros mas com a equipa a conseguir ser “exfiltrada” sem denunciar as outras.
Em casos desta natureza uma equipa de nove subdivide-se em três e tenta a fuga da zona sem ser detectada. Não havia sido necessário porque a equipa da retaguarda providenciou informação e “itinerários desimpedidos” em tempo útil, para além do apoio aéreo que inibiu os sérvios.
Recebemos ordens para continuar a missão e nessa noite fomos abastecidos pelo ar de provisões e, imagine-se, de preservativos e baralhos de cartas.
Que car**** passava pela cabeça dos logísticos, acaso pensariam que um gajo está aqui de férias? Ora F***-**

"I am responsible for 15.000 young men within UNPROFOR, and I have no intention to demand of them to wage war.''
General Sir Hugh Michael Rose - BBC, 21 de Fevereiro de 1994

22 Comments:

Blogger ALG said...

Manel, espero que te sintas melhor! Já cá fazias falta com os teus relatos.

Um abraço!

17 setembro, 2006 23:42  
Blogger O Transmontano said...

Então ó meu Malandro...Que te sintas melhor? Mas que raio de porra é essa? Estás, estiveste doente? Os AMIGOS, servem para as boas mas, acima de tudo, para as más ocasiões...Gostei do relato... É fabuloso. Embora eu tenha já tido o previlégio de o ter ouvido em discurso verbal....Um abraço my Big Friend...

18 setembro, 2006 00:53  
Blogger Princesola said...

Ainda bem que voltaste.A rotina ás vezes reconforta.

18 setembro, 2006 12:48  
Blogger Barão da Tróia II said...

Das vezes que vi o General Rose a falar na TV, fiquei com essa imagem que tu descreves de forma brilhante. Era um tipo que sabia da poda. Só estive 6 anos nas FA de Portugal e passei pelo mesmo, chefes que estavam bem era no fundo do mar, burros que nem um portão de uma quinta. Boa semana e cuida das dores.

19 setembro, 2006 11:03  
Blogger Um Poema said...

Neste teu relato, que me dispenso de comentar, duas notas ressaltam.
A dos pretensos 'adivinhos', planeadores, peritos a falhar, e a do comandante, Homem com H, que, na rectaguarda sente os riscos, conhece os perigos, que espreitam aqueles que mandou em missão.
No final, sobra na memória daqueles que comandou, a par dos fantasmas que teimam em não desaparecer, a honra de ter servido sob o seu comando.
É bom voltar a encontrar-te.
Um abraço

19 setembro, 2006 23:48  
Blogger Isabel Filipe said...

Oi Manel,

Regressei de férias e vim por a leitura em dia. Fantástico este teu relato.

Num dos teus comentários no meu Blog, falaste-me num Blog novo teu... qual o endereço??? não o vejo em lado nenhum....

Beijos

20 setembro, 2006 11:49  
Blogger Cristina said...

Olá Manuel,
Vou estar ausente durante 1-2 semanas por razões profissionais, e venho aqui deixar-te um beijinhu.
Até ao meu regresso
:)

20 setembro, 2006 12:39  
Blogger Menina Marota said...

Mais uma das tuas excelentes memórias, narradas na primeira pessoa...e que me é difícil de comentar pela força que dela emana.

Beijo meu e continuação das tuas melhoras ;)

20 setembro, 2006 22:46  
Blogger Afrodite said...

Relatos importantes e impressionantes.

E bem escritos
(pessoalmente, descartaria os * e escreveria a palavra, faz-me lembrar tempos de má memória. Se se dizem, por que nã se escrevem?Mas isto são opiniões, neste particular, a minha pobre opinião).


§(~_~)§ beijo da Afrodite
(uma carinha d'anjo num corpo espectacular, com tudo no sítio, muito dentro do prazo, sem aditivos nem silicones)

22 setembro, 2006 16:42  
Blogger Paulo said...

Foi no montado - alentejo - que batendo com um "varejão" nos chaparros reunia a vara de porcos.
As bolotas, por vezes, eram poucas...e aquela vara -constituida por cerca de 250 porcos pretos pequenos - não parava, em roda viva percorria, vezes sem fim, todo o montado. Eu, miudo de 12 anos, praticava o chamado "atletismo forçado", em constante gritaria com os «bichos», ao som do «alarido dos cães». Só uma coisa admirava nos porcos: Todos, talvés um grande sentido de orientação, voltavam, por sua iniciativa, ao «corral».
Anos depois fui para as tropas paraquedistas em Tancos. Na recruta fui sempre o melhor nos «crosses» e nas corridas de orientação (com carta topógrafica e bússula)...posso agradecer ao porcos.
Já na universidade, curso de direito, sempre brilhei nas intervenções, quando tinha que dar exemplos sobre a teoria do "homem medio" e nos crimes de dano onde o objecto era um animal.

Da tropa só tenho uma recordação: nada há como as cerimónias religiosas e as cerimónias militares, para fazer exaltar as multidões, cuja alma vibra intensamente sob a acção de duas músicas: a voz dos sinos e o som dos clarins.
Agora do montado tenho muitas recoradações: Os primeiros beijos, a primeira namorada,a primeira vez na vida sexual no meio rural, as bolotas, os porcos, a madeira de azinho, as sombras, o acarro...
Agora no tribunal...não há miudas como aquelas que conheci no montado e a «batina preta» muito menos honesta do que a dignidade daqueles animais e daqueles beijos, já me vai pesando nos ombros..Um dia ainda vou voltar a usar os meus "safões de couro" e o meu "vara-pau"...pois isto das grandes cidades não tem o sabor de uma «sandes de torresmos».
Desculpe o desabafo!!!!

Um abraço
Paulo

22 setembro, 2006 23:30  
Blogger aDesenhar said...

olá Manel

Bem vindo à blogosfera.

Li e registei o teu relato mas como sabes não comento.

Desta vez entrei aqui no blog e janela de comentários sem problemas, dá para perceber que resolveste o problema e
ainda bem.

Um abraço
Mama Sumae!

23 setembro, 2006 00:18  
Blogger Paulo said...

Obrigado pela visita lá ao meu "posto de sentinela" e pelo longo mas "sentido" comentário.
Abraço e resto de um bom fim de semana.
Paulo

23 setembro, 2006 19:23  
Blogger Micas said...

Espero que já estejas melhor.
Esse General mostra ser um Homem de "H" grande, e realmente os da logistica...sem comentários.
Mais um excelente texto, grata pela partilha destas tuas memórias.

Beijinho Manel e uma boa semana

p.s. Obrigada pelos elogios (que não sei se mereço) Beijo

25 setembro, 2006 07:11  
Blogger Goticula said...

Passei para te deixar um beijinho.

25 setembro, 2006 13:55  
Blogger Su@vissima said...

Leio-te...e fica esta sensação de "peso" pela maldade de alguns seres humanos!

Um abraço solidário :)...e um beijo daqui.

25 setembro, 2006 21:57  
Anonymous Anónimo said...

Exoscismar os medos, os fantasmas e os demónios da alma usando a escrita como terapia, é ter a coragem para os enfrentar. Acordar aos outros para o horror da guerra é ser audaz e consequente!!!
Obrigada pela lição de vida.

26 setembro, 2006 10:33  
Blogger Viscondi said...

Olá! há muito não tinha a oportunidade de revisitá-lo. hoje, para o meu bem, consegui. Continuo tendo por tí o maior respeito e admiração. Voltarei sempre que puder.
um abraço.
viscondi

26 setembro, 2006 12:39  
Blogger Isabel Filipe said...

bom fim de semana para ti...

bjs

29 setembro, 2006 11:17  
Blogger Micas said...

Passei para te desejar um bom fim de semana :)
Beijo

29 setembro, 2006 22:41  
Blogger aDesenhar said...

Bom fim de semana

Um abraço manel

Mama Sumae!

29 setembro, 2006 23:29  
Blogger Poesia Portuguesa said...

Vinha actualizar a leitura... mas vejo que continuas "ausente"... ai esses recursos que não te dão descanso... ;)
Beijo e bom feriado ;)

05 outubro, 2006 12:13  
Anonymous Anónimo said...

Ola Manel, e mto bem para q todos saibam o que "se passa".. Desejo que melhores das tuas dores...
deixo-te um abraço e beijinho*

07 outubro, 2006 22:52  

Enviar um comentário

<< Home