segunda-feira, janeiro 30, 2006

Memórias...


Pelas montanhas e rios
e mares que os rios buscam,
com o seu murmúrio fundo,
juro nunca me render.




Pensei amiúde não voltar a abordar tão realisticamente o tema da guerra, até porque bastas vezes me é doloroso fazê-lo e quando o faço, como agora, é no silêncio da noite que encontro a tranquilidade que permite por as memórias em papel virtual.
Não comando a memória ou a lembrança de determinados eventos de que fui, para o bem e para o mal, espectador e actor. Por vezes quero lembrar-me de um sorriso de alguém que já foi e só a expressão na morte recordo. Outras, quero esquecer um momento menos bom e não consigo, apesar da tentativa reiterada. Traumas, chamam-lhe alguns, memórias os oradores e os românticos, síndrome pós-qualquer coisa os médicos. Eu cá chamo-lhe experiência de vida não desejada.
Há uma vantagem quase morbidamente invejosa em ter sobrevivido ao horror; a de me ver envelhecer recordando os que morreram sempre jovens, tal como eram no dia em que encontraram a dama de negro. Cinicamente assaltava-me a ideia, quando estive naquelas situações, de desejar que nada acontecesse e que se tivesse de acontecer que fosse aos outros, ou então, se me tivesse de tocar, que fosse só um ferimento ligeiro. Pensava nisto amiúde, diariamente, mas quando havia acção, inconscientemente saltava em frente e fui capaz de coisas que o temor normal, humano, meu também, não imagina sequer realizável, sem heroísmos ou essas tretas que os homens inventam para distinguir quem sobrevive à matança, esquecendo convenientemente que por cada herói num lado, há mães, pais, talvez mulheres e filhos que choram alguém no outro.
Cada medalha equivale a determinado número de mortes do outro lado. Talvez por isso tenha vendido as minhas fardas, latas com fitas de pano e outras vãs exaltações do orgulho militar. Uma qualquer companhia de teatro lhes dará melhor uso. Orgulho-me dos homens com quem servi, de com eles ter partilhado o perigo, sem mais. Um dia atravessei a correr uma praça para ir buscar uma criança que havia ficado para trás na debandada que se sucedeu a um ataque de morteiro. Havia ficado só e ainda não o sabia, mãe e pai haviam morrido na explosão e só a sua pequena estatura a salvou. Estivesse ela ao colo de um dos pais e estaria com eles agora. Quando uma granada de morteiro rebenta, quanto maior é a distância ao ponto de impacto maior é a amplitude da projecção de estilhaços, pelo que quanto mais junto ao solo menor é a probabilidade de sermos atingidos. Daí por vezes suceder que após um rebentamento, ao nível do solo nada sucedia, mas nas janelas próximas morriam pessoas atingidas pelos estilhaços. Enquanto atravessei a praça a correr os atiradores furtivos tentaram atingir-me, houve até quem dissesse que elas me “batiam” próximas dos calcanhares. Porque o fiz? Eu sei lá…faz-se e pronto, nem há cá palmadinhas nos ombros ao estilo Hollywood, os camaradas chama-nos filho da p…, monte de m… e segue-se em frente. Nada mais fiz que outros não tenham feito e isso serve-me de consolação por ter ajudado ao regresso de uns, da mesma forma que frequentemente me recrimino de não ter podido ajudar outros. Por vezes sinto remorso de não ter ficado lá eu em vez de outro, mas a simples lembrança dos meus filhos e dos que quero reconforta-me sem me curar. Um balão de aguardente anestesia a dor do momento e amanhã é outro dia, …só isso.

Regressaram as memórias por via deste frio que se faz sentir. Como o respeito. Ainda há gente que gosta de ir à neve, como esta que caiu hoje. Já dormiram ao sabor da intempérie, mesmo dentro de um saco térmico? A perspectiva romântica sobre férias na neve muda radicalmente.
Já sentiram vontade de aliviar o intestino ao relento, em montanha, com ventos gélidos a soprar e temperaturas na ordem dos menos dois dígitos? Então não sabem as dores que se sente se não untarem previamente o “olho” do dito com vaselina para evitar a congelação dos fluidos interiores. Em casos extremos causa morte. Para os menos prevenidos ficam as comissuras do dito em ferida e para sararem são duas a três semanas. O simples libertar de uma bolha gasosa pelos fundos causa lágrimas de dor. O acto de agachar e pôr a pele a nu, apesar das ceroulas de tampa traseira, causa dores e cãibras enormes devido ao frio que se sente.
Experimentem, após uma noite em altitude, tentar tirar as luvas para simplesmente rasgar o papel de uma barra energética. As sandes parecem pedra, qualquer sumo, leite com chocolate ou até a água estão sólidos, somente a aguardente, vodka ou rákia (aguardente balcânica) se mantém líquidas neste inferno frio. Não se lava a cara, os dentes esfregam-se com uma pasta tipo pó granulado que depois se cospe misturado na saliva. O cuspo congela mesmo antes de chegar ao chão. O frio greta os lábios e até o mais leve sorriso se transforma num esgar de dor. E quando se tem de tirar as luvas para urinar? O momento parece hilariante, mas é deveras dos mais sofridos, isto porque a seguir as articulações das mãos ficam dolorosas até aquecerem de novo…que dores…nos nós dos dedos então!
Colocam-se as barras energéticas debaixo das axilas, local mais quente do corpo e depois de aquecidas mastigam-se cuspindo o papel de embrulho…férias na neve? Nem oferecidas. Poderia discorrer sobre o tema por horas e no entanto nenhum manual militar refere o assunto.


Mas gosto da montanha e ainda recentemente estive numa das mais lindas do país, em mais um retiro na demanda pelo equilíbrio que me permita viver mais uma temporada nesta selva de cimento. De facto todo o parque natural da Peneda-Gerês é de uma beleza extraordinária. Enquanto por lá passeava o corpo, o espírito acompanhava-o com memórias de outros locais, diferentes mas igualmente belos. Há zonas no Gerês similares às montanhas de Raska-Gora, dos Alpes Bávaros ou Franceses. A montanha tem isto mesmo, locais de similitude paisagística e sentimental. Apesar de ser um homem das planícies é a montanha que decididamente me faz sentir mais próximo da natureza, de Deus se assim se quiser. Já noite, enquanto preparava o ninho para a dormida, reparei na excessiva iluminação de uma povoação e o fogo de artifício atraiu a minha atenção.
Reacendeu-se então uma das mais terríveis visões da guerra. Durante os combates por Mostar era frequente aparecerem de manhã, bem dentro das linhas bósnias, cadáveres de muçulmanos degolados. Os sérvios da bósnia infiltravam-se de noite nas linhas inimigas e em silêncio executavam a matança. Uma noite estava de vigia num monte sobranceiro a Mostar, o monte Hum, a sudoeste da cidade, os combates pelos bairros periféricos aumentavam à medida que a noite avançava. Já de madrugada, a minha parelha, o sargento Evans, acordou-me dizendo que a cidade parecia um imenso cenário de fogo de artifício. O espectáculo era absolutamente inédito e terrivelmente belo, face aos milhares de pontos luminosos que se moviam em todas as direcções.
Os bósnios haviam descoberto que os sérvios se infiltravam pelos esgotos e prepararam-lhes a recepção. Nessa noite, depois de detectarem a sua presença, inundaram os esgotos com gasolina e lançaram-lhe fogo. Os que apressadamente tentaram sair pelas tampas à superfície foram abatidos, os outros, ou morriam queimados ou sufocavam. No dia seguinte as margens do rio Neretva, onde os esgotos conduziam, estavam pejadas de corpos de homens e animais.
Descemos à cidade e ali fiquei a saber a origem do “fogo de artifício” que havíamos testemunhado na noite anterior. O fogo nos esgotos incendiara homens e animais. Milhares de ratos em chamas haviam fugido do horror do fogo subindo à superfície e correndo pelas ruas da cidade até morrerem, outros caíram nas águas do rio. Os seus pequenos corpos em chamas eram os pequenos pontos luminosos que se nos afigurou ser fogo de artifício. Nunca mais vi girândolas com os mesmos olhos, detesto-as até. E o cheiro?...Meu Deus como cheira a morte pelo fogo…vomitei o dia todo e ainda me agonio quando recordo o cenário daquela manhã. Frio e fogo…dispenso!
E até pelos inimigos,
que odeiam a liberdade,
e por isso não são livres,
juro nunca me render.

24 Comments:

Blogger Menina Marota said...

Ainda estou com um nó na garganta ao ler esta narrativa, tão realista e ao mesmo tempo, tão comovente...

"...Há uma vantagem quase morbidamente invejosa em ter sobrevivido ao horror; a de me ver envelhecer recordando os que morreram sempre jovens, tal como eram no dia em que encontraram a dama de negro.[...]

... e existe o testemunho que nos passas, com todo este realismo, que me fez tremer...

Um abraço carinhoso...

30 janeiro, 2006 16:54  
Blogger ALG said...

Decididamente está na altura de possibilitares a todos a leitura destes textos, em forma de LIVRO e JÁ! É uma delicia ler-te e a forma como descreves cenas de guerra e com a sentis-te (e ainda sentes), merece ser partilhada, num mundo como o nosso onde imperam valores que cedem perante os que descreves!
Um abraço!

30 janeiro, 2006 19:56  
Blogger Henrique Santos said...

Meu caro Manel,
Este texto, como outros que já nos ofereceste, têm uma qualidade tal que estou com o meu antecessor, o livro impõe-se. Defendes valõres que eu quero que os meus netos leiam e interiorizem, que os meus filhos se revejam neles, e que eu jamais os esqueça. Manel, este texto está de tal forma escrito que magoa o interior, só em saber que certas coisas existem, porque alguém sem estes valores, quer que existam.
Um abraço do Henrique Santos
(Ricky)

31 janeiro, 2006 09:50  
Blogger paper life said...

LI de atravessado. Venho ler à noite com tempo e silêncio. Já não era sem tempo que voltasses.

:)

31 janeiro, 2006 11:17  
Blogger dr x said...

Lindas as fotos, lindo vc e o testemunho é marcante...tanto da guerra, quanto do frio na montanha, que por aqui no Brasil, não sabemos o que é. Sucesso neste novo ano. Elisabete

31 janeiro, 2006 17:37  
Blogger paper life said...

Desculpa se não comentei ainda mas... eu tenho os meus mortos de guerra e isso tb dói.

Um Beijo.

:)

02 fevereiro, 2006 19:35  
Blogger aDesenhar said...

ufffa
manel
desculpa mas parei logo no inicio do texto.
e por isso não comento, porque,
...
tenho a certeza que entendes ok!

abraço manel

mama sumae

02 fevereiro, 2006 23:20  
Blogger Menina Marota said...

Passei para reler-te e deixar um beijo e bom fim de semana ;)

04 fevereiro, 2006 10:01  
Blogger lena said...

Manel, ler-te faz-me recordar situações narradas por outros militares que estiveram também em guerra, ou que por lá passaram,
Reuniam-se muitas vezes em cada dos meus pais , nas noites de folga ou em dias de festa,
nem sempre eram os mesmos, mas ficou sempre uma ligação entre mim e eles, penso que já disse, aprendi histórias e cantares de várias regiões, com eles e guardo com saudade esse tempo, apesar de ter sido tão duro para eles
ainda hoje me visitam e os recebo em minha casa, com filhos e já com netos, claro muito mais velhos, cansados das suas experiências e expectativas de vida,
a guerra nunca a percebi, ou melhor penso que não quero perceber pois há interesses de muito maior valor para alguns que a vida humana,
fico com lágrimas nos olhos quando leio cada momento teu, passado nesse tormento onde muitas vezes tantos pensamentos, fazem parte do momento que lá se vive

este teu testemunho é muito real, verdadeiro e como o sabes descrever tão bem, apesar da "dor" com que o recordas

O Gerês encanta-me, respiro uma liberdade minha, apesar de eu adorar o mar e não saber viver sem ser ao lado dele

Adoro passar por aqui pela qualidade com que escreves, e apesar de tudo é delicioso ler-te, mesmo que magoe no nosso interior o que está descrito, continuo a pensar que o livro devia sair

Beijo-te carinhosamente Manel e fica com um abraço meu

lena

04 fevereiro, 2006 10:49  
Blogger vero said...

Não sei o k dizer...por isso...deixo-te um beijinho, o beijinho diz tudo...***
Bom Domingo!

05 fevereiro, 2006 17:30  
Blogger Cristina said...

Manel,
Deve realmente ser difícil viver com esses traumas da guerra.
Desabafa aqui que nós com carinho acompanhamos :)
beijinhu e uma boa semana
:)

05 fevereiro, 2006 18:04  
Blogger ALG said...

Caro Manel:
Sobre o teu comentário no meu ultimo "post", até concordo contigo, em abstacto, já quanto a uma situação prática e pensando que com a crescente criminalidade violenta, a qualquer momento podemos ver a integridade fisica e o nosso património perigar, eu sinceramente, nessa altura mandava às urtigas o que aprendi na FDL, sobre os pressupostos da legítima defesa, e só se não pudesse é que não lhes aumanteva umas gramas de chumbo ao peso corporal!
Claro que este tema tem muito que se lhe diga e seria conversa para umas boas horas.
Um abraço!

05 fevereiro, 2006 19:19  
Blogger Isabel Filipe said...

Um belo texto.
Mas duro ...tão duro...
saio daqui cansada...
tb odeio o frio...

boa semana para ti
Bjs

06 fevereiro, 2006 13:40  
Blogger Viscondi said...

Caro amigo, amanhã vou lhe prestar uma humilde homenagem, vou fazer um post linkando a tua página. Os seus textos demonstram àqueles que ainda idolatram os senhores da guerra, que a guerra é uma coisa feia, que não existem heróis, só vítimas, de uma forma ou de outra.
um abraço.

06 fevereiro, 2006 13:42  
Blogger Henrique Santos said...

Manel,
Passei outra vez para dar um abraço.
Ricky

06 fevereiro, 2006 14:57  
Blogger Memória transparente said...

Uma marcante experiência de vida para si este tema.
Beijinhos.

06 fevereiro, 2006 20:30  
Blogger Conceição Paulino said...

hoje estou com uma ferida aberta na lam, o aalma aberta numa ferida, por isso ler este texto nem me magoou, antes me trouxe memórias (não vividas, somente partilhadas)da guerra nas ex-colónias. O meu ex era pára.A violência de tudo aquilo, a inutilidade. O sofrimento de k falas, o humano equivalente, o do clima oposto. quente, humido, chuva, pântanos e rios. Insectos k te picavam e as larvas germinavam por dentro, alimentando-se da carne até completarem o crescimento...a camaradagem a vertigem, a repulsa e, simultaneamente, o impulso.
só k tu conseguiste encontrar um equilíbrio. O meu ex, a partir de um certo mmmt desequilibrou, transformou-se. era outro e tudo se perdeu. Mas para ele foram quase 4 anos directos com pausas de uma semana, raramente semana e meia depois de meses e meses de mato e selva.
tudo não. ficou o bom k vivemos, fcaram as filhas.
ainda be k consegues ir resolvendo. fico feliz por ti e pela tua família.
Boa semana. bjs de luz e paz

07 fevereiro, 2006 19:40  
Blogger O Transmontano said...

Cada homem, é uma inciclopédia.
Está na hora de publicares a tua.
Quanto ao texto, sinto-o perfeitamente. Já passei pelas agruras de guerras estúpidas.
Embora possa parecer um absurdo, quase que me sentia melhor numa Guerra convencional, do que nesta m.... de Guerra Psicológica que esta palhaçada Governamental e das Esferas Militares, agora se permitem alimentar.
Um abraço.

08 fevereiro, 2006 17:33  
Blogger Micas said...

Vinha só deixar um beijinho, regressei ontem de Portugal e o tempo anda escasso, contudo não consigo resistir aos teus textos. São autênticas lições de vida.
Leio-os, imprimo, volto a ler, dou-os a ler. Há mt gente que julga que sabe e não pensa. Seria muito bom que estes testemunhos chegassem a essas pessoas. É mais do que hora para publicar.
Beijinho

09 fevereiro, 2006 18:52  
Blogger Isabel Filipe said...

...passei a desejar-te um bom fim de semana.

Bjs

10 fevereiro, 2006 11:45  
Blogger Afrodite said...

"experiência de vida não desejada"

impressionante, este teu relato; e importante, não só como forma de catarse, mas para que a memória colectiva não esqueça.

Um beijo, meu querido

10 fevereiro, 2006 21:23  
Blogger lena said...

vim reler-te, sentir mais uma vez cada momento por ti tão bem descriro, escutar a música que adoro
e desejar-te um bom fim de semana

beijinhos meus

lena

11 fevereiro, 2006 11:16  
Blogger Conceição Paulino said...

Bj e bom f.s ;)

11 fevereiro, 2006 19:21  
Blogger Henrique Santos said...

Manel,
Passei para te perguntar, vais à reunião dos blogs no Alvito?
Um abraço, Ricky

13 fevereiro, 2006 10:24  

Enviar um comentário

<< Home