domingo, fevereiro 18, 2007

E Deus Virou Costas ...I

Aproveitámos a noite para estabelecer contacto com o grupo à nossa esquerda, o qual iria tentar a saída da área rumando a sul pelo rio Drina.
A actividade na montanha era enorme. O exército regular sérvio, completamente às cegas e com algum receio de perder mais homens como os que perdeu nessa tarde na troca de tiros havida com o nosso grupo, havia fechado o cerco (assim julgavam) e aguardavam agora pelos “rapazes” do Arkan, os tristemente famosos “tigres”, para nos darem caça. Iríamos ter a “honra” de ter o piorio no nosso encalço.
Evans fora ferido ligeiramente numa coxa, mas estava incapacitado de andar a um ritmo normal. Pepe, um asturiano, tinha as costas com estilhaços. As feridas resultantes, embora superficiais, haviam infectado e tinha febre.
Trocámos Evans por Nick, um inglês doido, que havia sido capitão dos SAS, mas que um percalço o havia despromovido e trazido à Bósnia para “reabilitação”. O plano consistia em atrair a atenção sérvia para norte permitindo que Evans, Pepe e Dan, se pusessem a salvo.
Ninguém esquecia a captura do subgrupo de Carlo, Mike e Esteban. Dan iria ter um trabalho enorme em amparar dois feridos rio abaixo. Informaram-nos que heli-recolha só em segurança e sem “hostis” na zona. Havia que improvisar de novo. Deixámo-los junto à margem agarrados a uns troncos atados por nós uns aos outros e num dos intervalos dos very-lights lançados pelos sérvios, metemo-los no rio. Como que por milagre a lua desapareceu e a noite ficou mais escura. Com tanto escolho e destroços rio abaixo, provenientes dos incêndios e da destruição de aldeias, talvez passassem despercebidos.
À teimosia britânica de Evans contrapus-lhe a minha casmurrice alentejana e o meu “staus” de squad leader. Compreendia-o bem, não nos queria deixar ali, sentia que nos abandonava. Mantivemos o alerta e a segurança e enquanto não os vimos afastar para lá da curva do rio não descansámos.
Os sérvios esperavam que fossemos para sul e para leste, portanto decidimos que nos embrenharíamos na floresta bem para norte, para o interior de território sob ocupação sérvia. Iniciámos assim a “fuga” para a boca do lobo. Durante toda a noite rajadas esporádicas para o interior da montanha anunciavam o receio sérvio em nos perseguir, pelo menos de noite. Batiam a montanha pelo fogo mas não entravam nela. A tarde anterior ficara-lhes na memória.

Quando amanheceu levávamos mais de sete horas de caminhada para norte. Havia agora a necessidade de encontrar uma povoação ou outra referência que nos permitisse saber onde estávamos. O GPS havia ficado sem baterias e agora só pela carta topográfica e caso não estivéssemos “fora” dela. Sempre fui previdente e como trazia comigo um mapa das estradas que comprara em Sarajevo dois meses antes, pelo menos, pelas referências rodoviárias, havíamos de saber onde estávamos. O rádio nem um pio.
Do alto da montanha avistámos Kopachi (Kopaci) bem para trás e para a nossa direita e lá à frente, ainda na bruma estaria Ustipracha (Ustripaca).
Resolvemos escutar o rádio e nada, só “batata frita”. O silêncio em redor, entrecortado por tiros ao longe, bem para sul, indicava-nos que estaríamos em relativa segurança. Decidimos procurar uma das centenas de cavernas que existem nestas montanhas e ali comer e descansar um pouco.
Stefan estava nervoso e murmurou qualquer coisa. Eu já “operava” com ele há três meses e conhecia-lhe as “caretas” que fazia. Três meses de vivência nestas condições equivalem a anos de vida em comum. Acreditem, conta-se mais da nossa vida aos irmãos de armas do que ao nosso melhor amigo, ou até a um pai. Olhei-o e acenei com a cabeça interrogativamente. Olhou para Nick e depois para mim, abanou a cabeça e pegando no meu mapa de estradas propôs-nos aquilo que acreditava ser a nossa única hipótese.
Inflectiríamos o nosso trajecto para oeste – noroeste até um dos pontos mais altos da região, tentando ter “antena” para contactar a base ou esperar que os “bird friends” (aviões de guerra electrónica), lá em cima, muito alto nos céus da Bósnia, conseguissem captar o nosso sinal.

Dormimos por turnos até ao anoitecer e já noite cerrada, sob um céu estrelado, recomeçámos a caminhada em direcção a um ponto alto perto de Jabuka (Iabuka). Voltámos a esfregar uma pasta de ervas esmagadas nas axilas e por todo o camuflado. Estas ervas de cheiro intenso, enganam o olfacto dos cães disfarçando o odor exalado pelo bicho homem.
Caminhámos parando a cada vinte minutos de marcha e escutando durante cinco. Nada, somente o barulho da bicharada nocturna. Olhei o céu sem nuvens e lembrei-me de quando me deitava de costas no chão, ao relento, na traseira da casa da minha avó na aldeia nas noites de verão…que saudades…
Stefan pára de repente e ajoelha silenciosamente. Aproximei-me pé ante pé. À nossa frente, no único caminho possível para passarmos um pequeno vale em altitude, cinco milicianos conversavam em volta de umas brasas. Um camião com uma insígnia na porta indicou-me tratar-se de tropas de Caminhos-de-ferro. Haveria mais alguém dentro do veículo? Seriam só aqueles?

Voltar atrás era impensável. Instalámos e decidimos aguardar pelo amanhecer, esperando que se fossem. Estava a menos de trinta metros deles, arma pronta.
Não dei pelo tempo passar mas aquelas bestas não paravam de beber e de falar todos ao mesmo tempo. Um deles levantou-se e dirigiu-se à traseira do camião, regressando com uma mulher jovem amarrada e amordaçada. Um outro, de pequena estatura levantou-se e caiu para trás, riu, peidou-se, tentou levantar-se e caiu outra vez. Voltou a tentar mas não conseguiu, encostando a cabeça à roda dianteira do camião, adormeceu. Os outros três estavam quase a dormir tal a quantidade de álcool que ingeriram.
O que trazia a moça amordaçada atirou-a violentamente ao chão, vindo cair muito perto da minha posição. Baixou as calças, arrancou as saias à moça e pôs-se nela. Aproximei-me dele e usando a “Fairburn” interrompi a violação. Quando me ergui Nick já havia eliminado o “anão peidão” e preparava-se com Stefan para saltar sobre os outros três. Um deles apercebeu-se do que o esperava e, quando tentou levantar-se para procurar a arma, Nick deu-lhe com a pá de campanha na cabeça. Um som cavo anunciou o rebentar do crânio. Os outros dois nem resistiram.
No camião encontravam-se mais duas mulheres e seis homens ainda novos. Pertenciam a Gorazde. Stefan explicou-lhes quem éramos e eles indicaram-nos o caminho que queríamos. Deixámo-los com os seus anteriores carrascos e adivinhamos-lhe o destino. São assim os Balcãs…há séculos.