sábado, dezembro 23, 2006


A todos os que sofrem a fome, a miséria e a guerra.
A todos os que estão longe dos seus ao serviço da paz.
A todos os que nesta noite nos hospitais, na estrada, nos quartéis militares e de bombeiros, nas esquadras de polícia e nos postos da GNR, velam pelo bem estar e segurança dos outros.
A todos os homens e mulheres de paz.

sábado, dezembro 02, 2006

A Caçada - Parte III








“Levar tropas sem treino para a guerra é desperdiçar vidas humanas.”
Confúcio, Filósofo Chinês, 500 A.C.




Uma caminhada de mais de cinco horas debaixo de chuva, vento e trovões, a par de um frio balcânico, deixaram-nos entorpecidos de tal forma que quando encontrámos uma saliência rochosa, assim tipo pala de boné, nos atirámos para o chão seco e ali ficámos, encharcados e a tremer de frio. Cada movimento doía mais do que o frio em si e assim aguardámos o amanhecer com a esperança de que os nossos perseguidores houvessem desistido de nos dar caça.
O rádio “piou” pela última vez a meio da madrugada para informar da recolha de todos os teams da área após o inicio da perseguição.
- White Raven two, white raven two, this is Ravens Nest, over!
Chamaram-nos assim a intervalos regulares por mais de duas horas e nunca obtiveram resposta. De vez em quando chegava-nos o som dos “helis” que levavam os nossos camaradas de regresso a “casa”. Qualquer lugar fora dali era bom, até uma fossa cheia de m****.
Ouvimos, com um aperto no peito, a comunicação da heli-exfiltração do resto da nossa equipa que ficara “lá em cima”. Foram os últimos a sair e soubemos depois que o nosso team lider, o Major Nick, havia proposto ficar na zona e procurar-nos. Fora-lhe negado e sei o quanto lhe custou. Com homens como ele ainda hoje, nos meus 47 anos, não hesitaria em partir para onde quer que fosse. Não é só lealdade o que nos une, é uma fraternidade forjada na partilha do perigo e um respeito pelo irmão de armas que vai ao ponto de se dar a vida por ele. Isto contraria tudo o que o instinto humano nos diz para fazermos e nestas alturas compreendemos as mães que oferecem a vida pela dos filhos. É o mesmo sentimento de desapego.
Estávamos sós e sabíamos que era assim. A nossa presença na área não poderia ser conhecida e materializada na captura, sob perigo de fortalecer a posição sérvia e o enfraquecer das Nações Unidas e da NATO. Daí que embora estivéssemos ao serviço oficioso da primeira, em caso de captura éramos da segunda.

Durante a noite, a espaços, ouvíamos os altifalantes das unidades de guerra psicológica proporem a nossa apresentação voluntária às forças regulares sérvias, a qual seria objecto de respeito pela Convenção de Genebra e que, em caso de cairmos nas mãos da milícia sérvia, nada nos era garantido. Admitiam assim que tinham forças “descontroladas”. Filhos daquela…
Estávamos conscientes do perigo…chovia tanto…olhei o relógio, eram 03H15 da madrugada…o barulho da chuva, o relampejar, o som dos trovões e o frio…., nunca senti tanto frio, m**** de frio!
Sorri e gargalhei baixinho quando me ocorreu um dizer de um instrutor e camarada em Penude, o 1º Sargento Oliveira, “Meninos, não chove nem há orvalho, está é um frio do car****”. Depois lembrei essa máxima dos livros da “ciência” militar escritos em pomposos e agasalhados gabinetes; “A guerra é um fenómeno de natureza contínua, faz-se quer de dia quer de noite, com bom ou com mau tempo.” – Pró cara*** os escribas da doutrina da morte e da estupidez.
Novo relâmpago que iluminou brevemente o buraco onde estávamos. Evans passava pelas brasas agarrado à “saw”, enquanto Stefan segurava nas mãos um rosário e olhava lá para longe. Fiz-lhes sinal que descansassem um pouco que eu ficaria de sentinela a primeira hora. Aninharam-se o mais que puderam e deixei de os sentir mexer.

-Ssssssstttt!
Devo ter passado pelas brasas pois acordei com o barulho do rádio no auricular. Lá fora chovia menos agora e o vento fora-se. Os relâmpagos, mais espaçados caminhavam para leste, para lá da margem esquerda do rio Drina.
Eram 04H43 da madrugada e novo barulho no rádio fez-me dar um pontapé a cada um dos meus camaradas.
-White Raven two, White raven two, this is Father Raven! – Quem seria father ravem? Não havia ninguém da lista de endereços rádio com aquele Call sign. Seria uma armadilha sérvia? – A voz, no entanto, soou-nos demasiado british, garantindo que não estávamos esquecidos e que tinha a certeza de que estávamos vivos uma vez que os sérvios continuavam à nossa procura e ele tudo faria para nos trazer de volta.
Amanhecia agora um dia cinzento mas sem chuva e estávamos já uns bons quilómetros para sul de Gorazde. Decidimos que nos aproximaríamos do rio ao anoitecer e que a corrente faria o resto, arrastando-nos dali para fora.
Ao início da tarde ouvimos claramente o som de jactos e julgámos serem deles. Por uma aberta no arvoredo foi claramente possível identificar uma parelha de jactos Panavia-Tornado a baixa altitude. Eram aviões da NATO, o que fariam ali?
Aguardávamos o anoitecer quando ouvimos novamente o barulho de jactos e pouco depois, para norte de onde nos encontrávamos, o ruído de explosões e alguns estampidos de antiaérea.
Posteriormente soubemos que Slobodan Milosevic não dera ouvidos ao velho (Gen. Hugh Rose) para abandonar Gorazde e as suas forças pagaram o preço. Estávamos a 12 de Abril de 1994. Este facto histórico, iniciativa de uma grande chefe militar, à revelia um pouco da política ocidental, fez com que a nossa retirada da área tivesse mais probabilidades de sucesso.

A noite estava escura como breu. Nem uma luz naquela paisagem trágica. Estávamos a uma escassa dezena de metros do rio. Despejámos as mochilas do supérfluo e destruímos e enterrámos o que nos faria peso, rádio incluído. Pegámos nos preservativos que nos haviam “caído” no primeiro abastecimento e toca a “encher balões”. Depois de cheios colocámo-los dentro das mochilas. Encontráramos um tronco de árvore seco e transportámo-lo até à margem. Mochilas colocadas para a frente, ao contrário da posição normal, para manterem a cabeça fora de água. Uma última “camisinha” no cano da arma para a proteger da água e de lama. Havíamos cortado umas ramagens que colocamos sobre a rede camuflada que nos cobria a cabeça, entrámos na água e aí fomos nós corrente abaixo.
Ao amanhecer do dia seguinte, após mais de oito horas dentro de água, saímos numa prainha fluvial a norte de Ustikolina, de onde um grupo de mulheres com trajes bósnios nos havia acenado. A Resistência Bósnia ouvira falar dos “desaparecidos” e procuravam cadáveres dos seus que viessem com a corrente.
Deram-nos comida quente e roupas típicas (que ainda guardo). Emocionámo-nos com a generosidade de quem tudo lhe foi roubado e ainda tinha para dar. Sentado no chão duma casa, com as mulheres por detrás de nós, solucei em lágrimas porque me lembrei dos meus filhos, então um com cinco anos e os gémeos com nove meses. Uma mulher bósnia de idade já avançada fez-me festas na cabeça e cantarolou qualquer coisa…apeteceu-me chamar-lhe avó…

Nesse dia à tarde fomos recolhidos por um heli canadiano e regressámos a “casa”. Mais tarde, no aeródromo de Butmir, após a nossa chegada, conhecemos o homem que prometeu trazer-nos de volta e que tudo fez para isso. Não esperou que o saudássemos militarmente, abraçou-nos e serviu-nos ele uma caneca de café. Ele, um general do Exército de Sua Majestade e comandante da UNPROFOR. Falo obviamente do General Sir Hugh Michael Rose, um dos homens que mais admiro. Caía o pano sobre a operação “Rainy days”.