sábado, março 18, 2006

Manias...

Respondendo ao convite da Menina Marota, infra elenco as cinco manias que julgo ter.

1 - Mania de levar leitura para a retrete, ao ponto de ser tão interessante que tenha ficado com as pernas dormentes e ter dificuldades em levantar-me.
2 - Mania de arrumar os meus livros e outros objectos tão bem que até às escuras os encontro pelo tacto, por lhes saber o lugar.
3 - Mania de passear à chuva e gostar. Se estiver de botas, tal como em míudo, gosto de passar nas poças de água, ehehehe!
4 - Mania de gostar das pessoas e coisas simples e fazer questão disso de forma radical, maníaca.
5 - Mania da verticalidade e de dizer o que me vai na alma mesmo sabendo os dissabores que acarretam.
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A 5 de Abril de 1992, Sarajevo, a capital da República da Bósnia-Herzegovina, foi atacada pelos sérvios. Esta cidade milenar nasceu nas margens do Rio Miljacka (Miliasca) e está rodeada por montanhas, em cujos pontos mais altos o Exército Nacional Sérvio, ajudado pelos sérvios da Bósnia, colocou 260 Carros de Combate (tanks), 120 Morteiros e diversas armas da enorme panóplia do horror bélico.
Em 2 de Maio de 1992 a cidade ficou completamente cercada, ficando nela cerca de 500.000 pessoas que não tinham meios de fuga ou não quiseram fugir. Parte da cidade foi ocupada pelos sérvios, mais particularmente os bairros periféricos a sul, na estrada para o aeroporto internacional, no bairro de Grbavica (Grbavitsa).
A parte da cidade que ficou fora das garras sérvias era constante e diariamente bombardeada e atingida por cerca 4000 projécteis de várias origens e calibres, atingindo hospitais, maternidades, escolas, mesquitas, igrejas, sinagogas, bibliotecas, museus, o que a sistemática sérvia ditasse. A estimativa do número de impactos é oficial e é baseada nos relatórios dos observadores das Nações Unidas. Os snipers encarregavam-se de alvejar quem, ao princípio do cerco, esperava em filas por pão e água e muitas vezes até quem socorria os feridos.
Durante a minha presença lá, a artilharia sérvia destruiu a central telefónica, deixando a cidade isolada do mundo, acrescentando que no Inverno de 93/94, a cidade ficou sem electricidade, gás e água corrente, pois o único reservatório que abastecia a cidade por gravidade foi destruído. A fome chegou a grassar e estranhamente a população de cães, gatos e ratos começou a escassear naquele Inverno. Numa lata de 20 litros de água deitava-se leite em pó para dar de beber aos mais pequenos, idosos e doentes. As instruções diziam que a ração equilibrada era de um quilo de pó para cinco litros de água. A realidade era de 20 litros de água para aquela quantidade de leite em pó. Coitadinhos dos pequenos...estranhamente choravam baixinho e calavam-se ao som dos tiros, tal qual tropas bem treinadas.


Os cemitérios surgiam por todo o lado em jardins, terreiros, quintais, campos de futebol e até no parque olímpico, nas proximidades do estádio de Kosevo. A cidade começou a viver de noite, faziam-se geradores com bicicletas, médicos operavam nas caves dos edifícios...o engenho humano no seu melhor e no pior.
As mulheres de leste são lindas e as balcânicas não fogem à regra. Rumores de que militares e civis ao serviço da ONU, EU e OSCE, obtinham “favores” sexuais a troco de eventuais vistos, medicamentos, comida e demais coisas comerciáveis, nunca deixaram de se ouvir. Havia até, dizia-se, receptação de dentes de ouro retirados aos mortos. A troco de uma Gillette para rapar as pernas e as axilas, ou de um penso de campanha para tornar o período mais confortável, poder-se-ia conseguir um favor sexual, dizia-se.
Ainda bem que nunca estive alojado nos centros de decisão, nos hotéis da capital bósnia, limitava-me a manter a distância daqueles locais de fama duvidosa. Sei que tinham banho todos os dias com água corrente e dormiam em camas propriamente ditas. Alguns ostentam altas condecorações nacionais e internacionais e estranhamente nunca os vi nos dias de “chuva” e à “chuva”. O medo e a cobardia podem ter vários nomes, mas na Bósnia chamava-se viroses intestinais e apareciam sempre na véspera das patrulhas para os sítios mais complicados.
Recordo uma “estória” que ouvi sobre um militar português que, na precipitação do tiroteio, disparou sobre a própria viatura. Um inquérito foi levantado mas urgia assinalar pela positiva a presença portuguesa naquelas paragens. Surpresa das surpresas, apesar do relatório dos peritos ter concluído qu
e pelo tipo de orifício, ângulo de entrada dos projécteis e grau de destruição, os disparos haviam sido efectuados a curta distância, para além do calibre dos mesmos não ser compatível com a panóplia sérvia, o militar foi condecorado pelo cidadão Jorge Sampaio, então PR, com uma das mais altas condecorações nacionais. Alguém se havia precipitado e depois...depois houve o medo de desmanchar a história e repor a verdade.

Alguns andaram por lá, mas da sua presença em certos territórios não se podia saber oficialmente, nem do que faziam, faltam até registos nos documentos individuais de alguns militares, não de semanas ou meses, mas de anos completos, algures entre 1994 e 1996.
Finalmente, em 26 de Fevereiro de 1996, com a abertura da passagem de noroeste, em Vosgoska e Ilijas, uma vez que Sarajevo tem túneis em vários pontos da cidade que atravessam as montanhas, os sérvios começaram a retirar.
Talvez um dia se saiba da verdade de como os bósnios foram ajudados ou como determinadas forças militares participaram naqueles acontecimentos de forma mais ou menos encapotada.
Talvez um dia, à semelhança do filme “Por detrás das linhas do inimigo”, com o nosso Joaquim de Almeida e com Gene Hackman, se conte a verdadeira história da recuperação do piloto O’ Grady, abatido sobre território sérvio, ou como soldados anónimos, infiltrados nas linhas sérvias, “iluminavam” com LTD (Laser Target Designators), os alvos sérvios que abasteciam a frente bósnia e que a aviação da NATO destruía com tanta precisão. Talvez assim se explique porque é que Slobodan Milosevic, Ratko Mladic e Radovan Karazidic, pagavam dois mil e quinhentos dólares por cada “infiltrado” morto ou capturado. Talvez um dia se faça justiça…talvez nunca.
Quando o cerco a Sarajevo foi levantado haviam morrido 10.615 pessoas, civis e soldados bósnios, das quais 1601 eram crianças. O número de feridos ascendeu aos 50.000, dos quais cerca de 1/5 ficou inválido. O cerco da cidade durou de 2 de Maio de 1992, até 26 de Fevereiro de 1996. Foram 1395 dias de tragédia e horror e foi o maior cerco da história moderna da humanidade. Tudo obra do visionário de uma Grande Sérvia, o agora desaparecido Slobodan Milosevic. O mundo está mais limpo hoje e o ar mais puro.
Talvez um dia a verdadeira história da operação “Rainy days” seja contada. Nela participaram militares pretensamente ao serviço da ONU, mas recebendo e agindo sobre ordens da NATO. Essa operação, que durou quase dois meses, marcou o início da viragem do sentido da guerra nos Balcãs, faz no próximo dia 22 de Março doze anos que a maior parte da artilharia sérvia foi destruída durante a noite e madrugada através de ataques aéreos da NATO. Grande parte do sucesso da missão aérea deve-se aos que estiveram no terreno mantendo os alvos "iluminados" até ao impacto. Duas das equipas não voltaram nem delas mais se soube. Posteriormente houve relatos de que estavam enterrados numa vala comum nos arrabaldes de Srebrenitsa. Um dia, talvez um dia...

sábado, março 04, 2006

Tis e Tias da minha terra!

O Alentejo é de facto um mundo à parte de tudo o resto, da mesma forma que o será o Minho ou outra qualquer região de Portugal. Como dizia a minha avó Joaquina: “Cada roca com sê fuso, cada terra com sê uso!”
No entanto no Alentejo há mais qualquer coisa para além de uma forma singular de estar na vida, tem pessoas de uma simplicidade tal que a sabedoria dada pelos anos que carregam, encheriam de inveja muito académico que por aí há imbuído de um pretenso conhecimento absoluto do saber.
Voltei recentemente ao meu Alentejo, já que me sinto um imigrante em Lisboa e é assim não por um pseudo regionalismo bacoco assente em premissas de uma qualquer superioridade, antes porque nunca me integrei na cidade, nem as pessoas me fizeram sentir integrado. Opções de vida.
Retomando, voltei ao meu cantinho natal e descobri, ou penso ter descoberto, alguns dos maneirismos e modas que afectam o “Trotinete-set” cá do burgo. Ao longo dos anos sessenta e setenta havia um grupo de gente, com muito dinheirinho, que viajava de festa em festa, da Europa para os EUA e vice-versa, de avião a jacto (Jet). Como constituíam um grupo singular daí resultou o termo set. Nascia assim o conceito de Jet-set, que hoje, lamentavelmente, muita gente, entre os quais se destaca uma larga maioria de estudantes universitários de comunicação social, não sabe o que significa. Assisti a este fenómeno na semana anterior ao Carnaval, num auditório de uma Universidade da capital quando o “Guest-speaker” os interpelou sobre a origem do termo e ao qual responderam, na sua grande maioria, por braço no ar, que Jet-set seriam os canastrões que costumam mostrar-se na televisão. Noutras palavras, claro. Enfim, não se pode pretender saber tudo, mas aconselha a prudência a não responder ao que não se sabe.


Fui então ao meu Alentejo, não para brincar ao Carnaval, mas para comer comida alentejana, feita por gente alentejana e no Alentejo, condições sine qua non, para se desfrutar da verdadeira essência da vida. Manias minhas.
Na primeira manhã antes de almoço, aí pelas onze horas lá fui eu ao beija-mão aos “velhotes” do costume. Pus pés à rua e aí vou eu a caminho da tasca do Ti Gervásio, qual ave migratória que voa por instinto na rota em busca do sul.
- Bom dia meus senhores, então como vai a saúde? – Perguntei.
- É Maneli, atão vieste ao carnavali? – Perguntou o Ti Carolino, estendendo-me a mão rugosa e áspera por anos de trabalho e da qual apanhei muitos tostões para “rabuçados” ou festas na cabeça.
- É, mas isso é mais para os gaiatos, eu cá já não tenho paciência para essas coisas, vejo mas não brinco! – Disse eu.
- Ó Maneli, quando é que te posso precurar uma coisa sobre uma carta que recebi do tribunali? – Perguntou o Ti Manel Cara Dura.
- Aproveite que eu estou de maré. Então meteu-se em trabalhos? – Perguntei.
- Ná, tenho cá pra mim quisto tem a veri com ê ter sido testemunha dum caçadori aqui há um ano atrás! – Disse sem preocupação.
- Ó Ti Gervásio ponha lá aqui qualquer coisa para calar estas almas! – Disse, convidando a rapaziada grisalha para um copo antes de almoço.
Estávamos nesta conversa de Maneli pra cá, Ti qualquer coisa pra lá, quando me lembrei que o Trotinete-set luso nem inovador no trato foi, pois veio buscar, isto é, rebuscar, o termo Tio (a), aos Tios e Tias da província.
- Ó Maneli, na queres provare um cadinho de paio da Ti Zulmira? Olha que é de porco preto! – Disse o Ti Carolino.
- Venha lá disso. Alguém me sabe dizer o que é feito do General Trindade? – Referia-me ao Cabo da GNR reformado, pessoa que toda a Vila estima.
- Anda doente das cruzes, sabes como éi, uma vida entera a cavalo na faz nada beim à saúde! – Disse o Ti Gervásio, ao mesmo tempo que me dava a provar um tinto daq
ueles e me punha umas azeitonas retalhadas temperadas pela Ti Humildá. Há lá agora pitéu igual.
- Este paio é uma maravilha, digam-me lá onde posso comprar uma ou duas peças destas! Atirei enquanto saboreava o enchido.
- Olha Maneli, tas parvo ô fazes-te? Atão a minha mulheri ó eu levávamos-te lá alguma coisa por isso, antes cair e partir um braço! – Disse o Ti Carolino mostrando assim o agradecimento por lhe fazer o IRS todos os anos, para além de outras coisas. Gosto de os ajudar nestas coisas, é mais um momento de prazer para mim do que efectivamente uma obrigação.
- Ó Ti Carolino, não se zangue comigo homem, afinal o trabalho que a coitada tem e os magros tostões da reforma se forem reforçados nada de mal virá ao mundo! – Disse eu, sabendo a reacção que geraria.
- Raforços metia-te a tua mãe no fundo das calças e nos joelhos quando eras gaiato...na se fala mais nisto e acabô-se! – Disse o Ti Carolino, já quase zangado.

Lembrei-me então da minha infância e de ir espreitar a Ti Zulmira a fazer os enchidos após a matança. É a única pessoa viva daquela geração na Vila que me trata pelo meu primeiro nome, a outra era a minha querida avó. Ainda hoje é assim, não sei porquê nem me interessa. Ainda a ouço nos ecos da memória da minha infância:
- Farnandinho, queres provare uma febra? Anda cá filho ca Ti Zulmira te arranja uma no pão que fiz inda agora!
Sabia-me pela vida, assim como as fatias de pão barradas com toucinho cozido e açúcar que me costumava dar quando regressava da escola. Que saudades.
- Bom dia meus senhores! - Saudou alguém que é de fora.
- Bons dias! - Respondeu cada um por sua vez.
- Disseram-me que é aqui que se vendem uns paios e pão caseiros e como estou de passagem para Évora, lembrei-me de aqui parar. – Disse o foarsteiro.
- É sim senhore, éi aí o Ti Gervásio que vende, mas os paios e o pão são ali da casa do Ti Carolino. – Explicou o Ti Manel cara Dura.
Comprou dois paios e dois pães de meio quilo (morcates), pagou e saiu.
- Ó Maneli, tu que vives lá prá capitali tens que explicare a estes cabronaços que os paios e o pão não se fazem na rua, fazem-se em casa, mas também na sã caseros, são é à manera dos caseros antigos, o que éi difrente! – Atirou o Ti Manel Cara Dura, e eu concordei com ele pois claro. Continuou.
- Sabes que mais Maneli, e atão aqueles jornalistas da tlevisão quando precuram às pessoas que perderam as casas, o gado, enfim tudo, nos incêndios, o que estão a sentire? Dava-lhes cá uma punhada prós cornos, isso é la precura que se faça a alguém que acabô de perdere tudo?
Aproximava-se a hora do almoço, despedi-me com um até logo e saí. Cá fora soprava uma brisa fria mas com aromas de campo. A passarada voava baixo, anunciando a chuva que enegrecia já o céu a norte. Sorri e senti um arrepio de alegria. Que bom estar ali de novo.