quarta-feira, dezembro 28, 2005

Em busca de Deus e do homem


"Cheio de Deus não temo o que virá, pois venha o que vier não será maior do que a minha alma."
Frase no Refeitório do CIOE1
Sempre fui, ou julgo ser, um homem esclarecido e ao mesmo tempo desejoso de uma aprendizagem continua da denominada escola da vida. É fundamental o conhecimento de “rua” para a obtenção de um conhecimento mais palpável, ou pelo menos a sua busca, visto que o conhecimento académico não basta para a determinação das verdades da vida.
É precisamente este que falta à maioria dos políticos ou das classes dirigentes e quando o têm, porque oriundos de famílias mais modestas, muitas vezes é o deslumbre dos títulos académicos ou os cargos obtidos que deita a perder todos os anos vividos com os amigos de infância e ou juventude.
Um dia, estava eu de férias na minha terra natal e, nas ruas da cidade, encontrei um velho companheiro de infância e juventude que me convidou a passar lá por casa. Dois dias depois, saindo de casa com o meu pai para ir ao café, decidi tocar à campainha da vivenda do dito para o convidar também para um café. Atendeu-me a mãe, a qual reconheci de imediato, mas o inverso não sucedeu, talvez por distracção. Perguntei-lhe pelo filho tratando-o pelo nome por que sempre o tratei, até porque faço distinção entre o uso de nomes e títulos em lazer e em trabalho.
A resposta veio pronta e até um pouco seca, talvez a adivinhar que eu fosse fazer algum pedido ao filho, logo eu, que sempre dei aplicação ao ditado que cedo o meu querido pai me ensinou: “Nunca sirvas quem serviu e nunca peças a quem pediu.”
- O Senhor Doutor não está e hoje não vai ao escritório! – Anunciou.
- Muito obrigada minha senhora, informe-o por obséquio, que a um amigo lhe foi impossível aceitar o convite recebido e que também ele hoje não está no escritório. - Retorqui.
- E quem é esse senhor…é doutor advogado como ele? – Perguntou de novo.
- Não minha senhora, é amigo dele de infância e juventude, mas acho que se enganou na porta. Obrigada na mesma. - Rematei já com uma certa náusea.
Cerca de cinco minutos antes de sair de casa dos meus pais havia-o visto chegar à sua, no seu sumptuoso sinal exterior de sucesso com quatro rodas, mas agora não estava…coincidências.

Por isso gosto das minhas peregrinações ao campo e à montanha, sinto-me mais perto da natureza e de Deus. Não há monte ou montanha com um crucifixo no topo a que eu não goste de subir e faço questão de ir pelo meu pé. Não sou alpinista, apesar de já ter estado nos Alpes franceses e nos bávaros, tendo dormido uma noite ao relento nestes últimos, sem imposição, junto a um curso de água e soube-me pela vida.
É desta última que guardo uma memória grata pois teve um significado especial. A Bósnia havia-me tirado a vontade de passeios em montanha, já não as olhava com o romantismo e o espírito de aventura de outrora. Depois daquela noite tudo voltou ao normal.
Um dia, na varanda do bar do edifício de aulas da Escola da Nato em Oberammergau - Alemanha, um amigo dinamarquês, Kysbye, major pára-quedista, perguntou-me se queria subir à montanha no sábado seguinte, respondi-lhe afirmativamente mas disse-lhe que não ia pelo trilho normal, iria atacar o cume por outro lado, partindo na sexta-feira, depois das aulas, dormindo essa noite em altitude. Gracejou qualquer coisa sobre a dificuldade que eu sentiria e depois informou-me que no topo, no corpo da cruz, existia uma caixa metálica que guardava um livro de visitas onde era uso as pessoas assinalarem a sua passagem. Disse-me ainda que esperaria lá ver a minha assinatura.
São estes desafios que me levam a entrar como que num transe, da mesma forma concentrada com que pisava as arenas, buscando uma adrenalina diferente, o fazer parte da natureza, sentir-me nela e dela. Eu, os meus pensamentos e Deus.
Naquela varanda recordei a subida ao monte Krizevac, sobranceiro a Mostar, uma subida ao ponto mais alto dos Tatra, na República Eslovaca, e as patrulhas em Raska Gora, especialmente a última, de que um dia, com mais serenidade, darei luz.
Estava decidido, teria de dormir uma noite na montanha, sem medos, em paz e em comunhão com a natureza. Arrumei a mochila com o essencial para estas coisas e na sexta-feira depois das aulas pus pés ao caminho.
Os que me conhecem, reconhecerão a bandeira pátria em volta do meu pescoço, vai comigo pra todo o lado nestas actividades. Hábito iniciado há muito, nas montanhas a norte e em redor de Sarajevo.
Último “check” antes de iniciar a subida até ao local de pernoita que havia escolhido no mapa, uma pequena depressão que me garantiria abrigo dos ventos. Para além do essencial, uma pequena lista telefónica com os números de emergência, duas baterias de telemóvel, pimenta (para espalhar, quando da pernoita, num perímetro mais ou menos circular de cerca de 30 metros de raio), pois qualquer animal que a fareje, para além de perder o faro fica a saber que o território está delimitado por um “bicho” superior. A faca de mato e um estojo de enfermagem de emergência completaram a carga essencial.

Após iniciar a subida e já quase a anoitecer procurei lugar para dormir junto a um regato com marcas de pequenas patitas de animais de sangue quente, sinal evidente da pureza da água e da ausência de animais maiores. Atei a “maca” (cama de rede) a duas árvores, a cerca de dois metros do chão, e procurei ervas naquela altitude fazendo com elas uma pasta que misturei com terra, urina e água, esfregando em seguida as minhas roupas e todo o material ”não natural” com a mistela. Para além de desodorizante natural, marca território e confunde o odor humano com os odores naturais da ambiência, tem é de ser feito depois de todas as roupas estarem arejadas do suor, secas ou mais ou menos secas, meias incluídas.
De manhã, ao primeiro chilrear das aves, acordei depois de uma noite bem dormida e serena, mas cujo início havia sido de recordação e resignação. Tomei um banho improvisado na água gelada do regato, passando também as roupas objecto da mistela pela água, torcendo-as e colocando-as em seguida penduradas na mochila para secarem durante a marcha. Comi uma barra energética e ataquei o resto da subida pela vertente mais difícil.
Quando cheguei ao Kobel, cujos últimos 30 metros são em escalada através de uns grampos cravados na rocha, encontrei um turista austríaco que me tirou as fotografias comemorativas. No livro de visitas deixei escrito o que de momento me veio à cabeça; um pequeno verso de uma canção alentejana de Portel, uma frase em inglês dum álbum de Vangelis, os meus nicks, país e data:


Dei um ai entre dois montes
Responderam-me as montanhas
Ai, ai que eu já não posso
Sofrer ausências tamanhas

Going on means going far,
going far means returning.

Bambino (Ramon) - Portugal, 7-7-2001

Estava cumprido o ritual de peregrinação e a exorcização de mais um fantasma. Nessa noite comi um bife na pedra, pago pelo meu amigo Kysbye e ofereci-lhe um edelweiss 2 que colhera. Nesta quadra voltei a recordar tudo isto, perguntando-me que importância terá esta narrativa para outros. Terá a que lhe quiserem dar, para mim foi o viver de momentos únicos, meus, de superação, paz e conforto espiritual.

Para vós:
Que os melhores momentos de 2005 sejam os piores de 2006.

________________________________________________

1 - A frase encontra-se na parede do refeitório do aquartelamento de Penude - Lamego, onde está sedeado o Centro de Instrução de Operações Especiais.

2 - O Edelweiss é uma pequena flor típica dos Pirinéus e dos Alpes que só se encontra acima dos mil metros de altitude. É também o símbolo das tropas de montanha alemãs.

domingo, dezembro 18, 2005

Exorcismo, penitência e revelação


Um único minuto de reconciliação vale mais do que uma vida de amizade.
Gabriel Garcia Marques



Aproxima-se mais um Natal, uma daquelas épocas em que tentamos expurgar os pecados de um ano, vestindo capas de santos e desejando a todos festas felizes, na esperança de que alguma divindade nos perdoe. Escrevo este texto depois de ter entornado uma garrafa de Monte Velho, a acompanhar borrego assado no forno. Neste momento estou na terceira aguardente “Fim de século” e avizinha-se uma noite de espanta fantasmas.
Sempre fui contra o cinismo cruel típico desta quadra, negando participar em festarolas com quem passava um ano inteiro a tentar copular-me e que, quando chegada esta quadra, tentava passar por cordeiro, escondendo os cornos que voltaria a mostrar no primeiro dia útil do ano seguinte.
Por isso, para os cínicos do ano inteiro o desejo de valentes diarreias, azias descomunais, hemorroidais de dimensões citrinas e acima de tudo, que esqueçam que eu existo para não ter de lhes devolver os votos que não desejo. Àqueles que não forem vítimas daqueles sintomas, desejo-lhes uma dolorosa obstipação. Daquelas cujo alívio se faz de forma emocionada, isto é, com lágrimas nos olhos, tal a dificuldade elástica do esfíncter.

O meu querido pai costumava dizer que o tempo faz aos homens o que faz aos vinhos, apura uns e avinagra outros. Creio que me tornei um misto de ambos, para aí um clarete que não é vinho nem vinagre. Isto porque julgo que me apurei nalgumas coisas e avinagrei noutras.
Não consigo ser como Jesus Cristo e dar a outra face, talvez por isso o admire e venere à minha maneira. Com a mesma força que acredito em Deus, seu pai, não reconheço os padres como seus mandatários na terra, nunca lhes vi a procuração. Perdi a fé neles em Sarajevo, em Abril de 1994, quando um capelão militar italiano se recusou a dar a extrema-unção a uma criança bósnia de quatro anos, pelo facto de não ser baptizada pela fé cristã. Alá e Deus
significam rigorosamente o mesmo, não para os dignitários da Igreja, como se Deus ou Cristo pedissem um qualquer cartão de sócio à entrada para o paraíso. Deu-lhe os últimos sacramentos, à sua maneira, o capitão José Esteban Naranjo Aguirre, pois na sua adolescência havia sido sacristão. Quando fomos para Mostar e o capelão se veio despedir de todos, a maior parte deixou-o de mão no ar, cumprimentando-o só com a continência. A cara que fez demonstra que talvez ainda hoje não saiba o porquê do nosso gesto.


São sobejamente conhecidas as práticas da igreja católica ao longo dos séculos e chocamo-nos agora com o terrorismos faccioso de feição religiosa, como se o cruzados tivessem levado bombons para a terra santa ou a inquisição fosse assim um programa de cultura geral em que quem não soubesse responder, de acordo com o inquisidor, ganhava direito a uma demonstração de prática masoquista até responder correctamente.
Assim foi germinando a minha teoria, com premissas retiradas dos ensinamentos da salvação das almas que o catolicismo ensina. As patrulhas nas montanhas balcânicas deram-me tempo de sobra para a formular e optar pelo deambular da eternidade, seja ele bom ou mau. Se os bons vão todos para o céu, eu cá quero ir para o inferno e por várias razões. A primeira, desde logo, porque tudo o que é mulher “mal comportada” e malta dos copos vai para lá, condenados pelos representantes da Igreja, nunca por Deus e muito menos por Cristo. A comprová-lo está Maria Madalena. O inferno é pois, onde estarei seguramente melhor.
A segunda, que reputo de primeira, deve-se ao facto de um dia ter falado com S. Pedro em sonhos. O santo, interpelou-me sobre o que eu havia feito a uma moça, por mera caridade afirmo, dada a sua extrema fealdade facial mas excelentes curvas corporais. Havia-a eu consolado de uma longuíssima abstinência de homem, aplicando, para o acto, a táctica do camarão: esquece a cabeça e come o resto.
Ela ficou agradecida e de vez em quando pedia-me uma descarga de adrenalina e eu não me fazia rogado, pois somos todos filhos de Deus. Com o tempo revelou-se uma excelente cama. Foi ela que mitigou a fome de quem ficava longas horas, a fazer figura de urso, encostado a um balcão de discoteca a “dá-las” com os olhos.
Retomando. Então S. Pedro disse-me que havia feito bem, porque as que não desse aqui em baixo, levava-as todas lá em cima. Há uma contabilidade para isso, foi-me mostrada no meu sonho. Daqui resulta a primeiríssima opção de ir para o inferno, senão vejamos: Se só há anjos no céu e, segundo se diz, não têm sexo, mas todos têm cu, onde raio quereria S. Pedro que eu pagasse as que deixo de dar cá em baixo? Isso será bom para apresentadores de televisão, humoristas, governantes e outras bichonas do género, para mim não.
Esta semana vou outra vez beber uns copos até tarde e altas horas visitarei os meus amigos da Av. Almirante Reis. Vou fazer o que sempre faço quando me avinho, compro duas “six-pack” de cervejas e umas bifanas e vou-lhes dar o pequeno-almoço, desta feita o de Natal. Não tenho pachorra para distribuir sopas ou envergar uma falsa capa de misericordioso para mostrar à sociedade o quão “bonzinho” sou. Tenho uma vizinha, pessoa de televisão, que compra carne da vazia para o cão e depois contribui para o “Banco Alimentar” com arroz e feijão do mais barato. E o alarido que faz disso.
Por falar em misericórdia expliquem-me, quem saiba, porque é que o Padre Milícias, sendo Jesuíta é rico? O voto dos jesuítas não é de pobreza?

Desejava passar este Natal no meu Alentejo, esperando pelas prendas do menino Jesus, sim, porque no Alentejo não é o Pai Natal que dá as prendas, não acreditamos nessa invenção de marketing da Coca-Cola. No Alentejo é o menino Jesus e a ele até se canta.
Recordo, à mesma velocidade com que os humores alcoólicos do vinho e da aguardente me correm nas veias, como estará a ser o aproximar deste Natal para os sobreviventes de todas as desgraças, para os do Tsunami do ano passado, para os que estão inocentes de todas as desgraças humanas, para os que, como eu, foram testemunhas da tragédia da guerra, para os que ontem de noite em Lisboa, às quatro da manhã, com quatro graus negativos, dormiam junto à entrada da estação de Metro em Entrecampos e a quem tive vergonha de desejar um bom Natal...Bom? Natal? O que é mau sabem de certeza, vivem-no todos os dias, quanto ao Natal conhecem-no porque vêem os enfeites das lojas.
Como podem dizer que há democracia com gente a sofrer assim? Quantas camas de asilo nocturno não se fariam com o dinheiro das megalomanias do Partido Xuxalista?
Vou beber mais uma aguardente, anestesiar-me, e lá para a madrugada vou falar com os meus fantasmas ou sair e assobiar enquanto caminho:
Hello darkness my old friend,
I’ve come to talk with you again!
O que é a felicidade? Que felicidade desejamos aos outros? Quantas vezes o fazemos desejando-o mesmo em vez de o fazermos por mero trato social?
Hoje revelo-me um homem novo, tal como um sobreiro é esgalhado de oito em oito anos e lhe retiram a cortiça, hoje exorcizei uns fantasmas, consegui ver imagens reais de Sarajevo durante a guerra e não chorei, bebi um pouco, mas já não choro!
Vergado pela beleza e paz das poesias e dos textos que leio na blogosfera, agradeço àqueles que me têm visitado, pois é vossa a obra deste renascimento, uma vez que da forma como me leram, sei que me compreenderam e contribuíram para o contar de uma verdade que calo há muito e que é a minha e a dos que comigo viveram aqueles momentos.
Um Natal como o queiram, para mim será sempre mais um.

As lágrimas da piedade consolam quando é um amigo que as derrama.

Alexandre Herculano

quarta-feira, dezembro 07, 2005

A verdade oculta

“A velocidade é a essência da guerra. Ganha vantagem da falta de prontidão do inimigo; progride sempre por itinerários inesperados e ataca-o onde ele se sente mais seguro.”
Sun Tzu


A todos os que compartilham as minhas mágoas.

Dei comigo a pensar, enquanto caminhava embrenhado no som dos meus passos, mas atento a tudo o que me rodeava, que já há duas longas semanas que Dijana se foi. A patrulha apeada que efectuávamos há quatro longos dias, a par das poucas horas de sono, começava a causar o nervoso miudinho característico do desgaste causado pela fadiga e pela tensão. Não estávamos propriamente em passeio por aquelas montanhas na zona de Raska Gora, a norte de Mostar, com paisagens de cortar a respiração. Não fosse a guerra e pareceria uma daquelas caminhadas organizadas.
A cidade onde tínhamos agora a base de apoio, perto do aeroporto, recebeu o nome devido a uma ponte romana que os eslavos haviam baptizado de Stari Most (Velha Ponte) e que, com a ocupação otomana, havia evoluído para Most stari e posteriormente Mostar, nome que ainda mantém. Várias pontes ligavam a margem oeste à margem leste do rio Neretva, mas aquela, o ex-libris da cidade, ficou famosa porque o mundo assistiu à sua destruição através de imagens quando a artilharia sérvia a destruiu em Novembro de 1993.
Agora o sector mantinha-se relativamente calmo desde que em Maio passado (1994), croatas e muçulmanos assinaram o acordo de união e a criação da Federação da Bósnia e Herzegovina.
Havia relatos de algumas infiltrações em território sob a nossa responsabilidade por guerrilheiros Chetniks vindos da Sérvia e da República Serpska da Bósnia, assim como de Mudjahedin vindos de toda a parte do mundo árabe para ajudar os bósnios. Estes entravam pela Albânia e depois seguiam por mar até à Baía de Klek, única faixa de terreno que dá acesso ao Adriático. Impunha-se localizá-los no caso de entrarem na zona sob protecção da ONU, relatando o facto e aguardando a decisão do comando.

A paisagem era qualquer coisa de maravilhoso e as inúmeras cavernas existentes fariam as delícias de qualquer espeleólogo, assim como eram agora a nossa preocupação, pois havia notícia de que vários grupos de guerrilheiros se escondiam nelas de dia, atacando as populações durante a noite. Há duas noites que se ouviam disparos de armas ligeiras, gritos e, ocasionalmente, quando o vento o trazia, chegava-nos um cheiro adocicado e enjoativo, fruto da incineração de pessoas, animais e casas. Daí que o indispensável companheiro do soldado nestes cenários seja o frasco de Vick Vaporub, é que para além de desentupir as narinas protege da única dimensão que os media ainda não dão; o odor.
A tensão era pois elevada. No caso dos bandos nos encontrarem...tínhamos ainda presente o que sucedera aos três americanos e aos dois belgas encontrados dentro de uma escola primária abandonada. Ainda era uma incógnita a identidade dos autores.
Saímos da orla da floresta e deparámo-nos com uma quinta num pequeno vale em altitude, onde nos apareceu na eira um homem alto e bem constituído. A um sinal de Ron, comandante de patrulha e substituto de “Gaza”, estabelecemos a segurança da área enquanto ele e o intérprete, Javier, um capitão espanhol, se aproximaram do homem e o interrogaram. Duas caritas de criança e um rosto de mulher espreitavam por detrás das janelas.
Face à calma aparente, Ron chamou-nos para que enchêssemos os cantis no poço, enquanto o homem se dirigia para o interior da casa, voltando pouco depois com enchidos de carne, queijo e algum pão, que nos ofereceu. Em contrapartida os que fumavam deram-lhe tabaco e outros deram-lhe chocolates para a mulher e para as crianças. Cumprimentou-nos a todos com um forte aperto de mão e apontava para o intérprete um ponto alto para leste da quinta.
Após cerca de uma hora de marcha, sempre a subir, fazemos um alto para comermos qualquer coisa e Ron explicou-nos o que havia sido dito pelo homem. Eu, pelo meu lado, sentia que algo não batia certo, mas ainda não sabia o que era.
Continuou dizendo o quanto o homem havia sido cooperante, que até nos havia indicado um bom local para pernoitar e que não havia sinal de guerrilheiros por aqueles lados.
- Hey, Ramon, you always take your gloves off to shake a men’s hand? 1– Perguntou Evans.
Respondi-lhe afirmativamente, era um acto de educação mesmo que estivesse frio. Usávamos luvas tácticas de Gore Tex, de meio dedo, para a arma não nos escorregar das mãos e também para proteger os nós dos dedos de qualquer pancada ou arranhão nas árvores ou arbustos. De repente fez-se luz, lembrei-me do meu avô e de tantos outros homens do campo que conhecia. Era agora claro porque não me havia sentido bem naquela quinta. Chamei Ron e disse-lhe que o quinteiro não o era e que podíamos estar a caminhar para qualquer coisa menos boa.
- What are you saying? 2– Perguntou, enquanto o resto do grupo escutava.
- Did you ear the dogs barking? Or did anyone touch the man’s hand? 3– Perguntei.
- Come on, with the war they probably ate the dogs! 4- Disse Evans a rir.
- Hold on Ramon, what’s your point? 5 – Perguntou Ron.
- Think. No dogs in the farm and a farmer without callus in his hands!? 6 - Disse eu.
- Ramon, Evans, Godzilla, go back and set up surveillance at the farm! If you’re correct Ramon...the rest secure the perimeter. OK, move! 7– Ordenou Ron.
Descemos encobertos pela vegetação até um parapeito de rocha que permitia uma observação de cima para baixo sem sermos vistos. Tirei os “Tasco” (binóculos) do bolso e então, passados dez minutos, o que observei deu-me razão. Um grupo de dezoito guerrilheiros arrastava um homem, assim como a mulher e as crianças que havíamos visto para dentro do barracão do gado e, provavelmente, esperariam pela noite para nos emboscar ou para se refugiarem na montanha. Esperámos ouvir gritos ou tiros, mas nada. Só de pensar que estivéramos à mercê destes gajos…!
Mantivemos a vigilância e a meio da tarde o grupo pôs-se em marcha, infiltrando-se para oeste, em sentido contrário ao que nos havia indicado o “quinteiro”, bem para o interior da zona sob alçada da ONU. Caminhavam seguros de que nos haviam enganado e nós recebemos ordens para os seguir, só. Quando anoiteceu montaram acampamento num ponto alto, um pouco abaixo da posição do grupo de perseguição, onde eu me encontrava, a cerca de 400 metros para oeste da nossa posição. Tinham aí abrigos escavados e bem dissimulados. Os binóculos de visão nocturna garantiram-nos que não haviam mudado de posição a coberto do escuro.


Mantivemos contacto visual a noite toda, em turnos de duas horas. O resto do nosso grupo pernoitava cerca de 200 metros mais atrás, também junto a um curso de água. Era sempre assim porque o barulho da água corrente abafa o ruído do ressonar, ou de alguém que sonhe e fale de noite e mesmo de outros ruídos saídos por outros lados.
Deitei-me de costas a olhar um céu cheio de estrelas naquela madrugada fria de Junho. Relembrei o rosto de Dijana na despedida e o abraço forte em que me envolveu, ritmado pelo soluçar do seu peito contra o meu. Os seus lábios haviam roçado os meus no desejo de um beijo proibido...sentira-lhe a respiração ofegante…quente…os lábios entreabertos pediam o que a vida nos negava. A simples recordação de tudo, ali, no meio de nada, fez-me intumescer…que raio de momento.
Ron já havia comunicado a posição dos “infiltras” e quando amanheceu reiniciamos o seguimento. Agora era só aguardar pela próxima manobra. No fim desse dia iniciaram a aproximação de Bogodol, povoação onde em 1992 os croatas haviam massacrado toda a população sérvia, queimando todas as casas. Talvez fossem em busca de vingança. Aguardava-os uma unidade nossa para evitar o pior, fazendo cumprir as determinações internacionais, desarmando-os e reconduzindo-os a território sérvio. Resistiram e o inevitável aconteceu. O apoio aéreo foi solicitado. Uns minutos depois os aviões fizeram o seu trabalho. Dois dos novatos foram contar os corpos e não faltava nenhum. Apressámo-nos a abandonar a área em direcção ao ponto de exfiltração (recolha), onde fomos recolhidos já ao amanhecer.
Soubemos depois que nenhum mal haviam feito à mulher ou às crianças, mas haviam esmagado os dedos das mãos ao homem com um torno, impossibilitando-o para sempre de angariar sustento para a família.
No fim desse dia, no recato da minha cama, fiz mais seis xis no calendário, faltavam-me agora quarenta e um dias para o regresso. Voltei a pensar em Dijana, no seu cheiro e na sua boca...inevitavelmente senti-me inchar de novo. Levantei-me e fui aos balneários. Imaginei-me dentro dela…gentilmente, sem frenesim… fazendo durar o momento, o desejo fez o resto…ali, no meio daquele cubículo de fibra. Regressei ao catre, a saudade voltava a doer…muito.
________________________________________________
1 – Ei, Ramon, tiras sempre as luvas para apertares a mão a um homem?
2 – O que é que estás a dizer?
3 – Ouviram os cães a ladrar? Alguém tocou (sentiu) a mão do homem?
4 – Vá lá, com a guerra se calhar comeram os cães!
5 – Aguenta aí Ramos, qual é o teu ponto de vista?
6 – Pensem. Uma quinta sem cães e um fazendeiro sem calos nas mãos?
7– Ramon, Evans, Godzilla, voltem atrás e vigiem a quinta. Se estiveres certo Ramon…o resto monta segurança ao perímetro. OK, mexam-se!